quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Logo ao Acordar

Z: Deves. Tens mais medo de mim que o rabo da seringa.

X: Pá, pessoas como tu como eu ao pequeno-almoço.

Z: Ahahah. Olha, amanhã sempre é para ir jantar a tua casa?

X: Claro! A minha palavra nunca engana.


_____________


Noite do dia seguinte:

Z: Não tens cervejas frescas pá?

X: No frigorífico já acabaram?

Z: ya!

X: Então estão no congelador.

Z: Chico - grita Z assustadíssima - que merda é esta?

X: São partes de clones teus - diz X calmamente.

Z: Mas... Como?... Porquê?... És doente!

X: É só o meu pequeno-almoço.

sexta-feira, 17 de julho de 2020

EntreParedes

Desde que comprámos a casa nova velha da década de 1960, desde que restabelecemos os contractos e de cada vez que esperamos que a nova torneira prateada no dê água quente ouvimos os tubos a iniciar na parede do quartocozinha uma leve batida musical, que vai crescendo até ser uma forte batida industrial e se vai esvaindo numa leve batida de chuva das goteiras.

Estranhámos e amedrontámo-nos com o som mecânico da parede. Pensámos que talvez se tratasse de uma fuga de água, mas a parede nunca apareceu tingida de lama e ferrugem na cal. Perguntámos a entendidos que nos aliviaram dizendo "São pareces velhas, e o cano soltou-se com o tempo. Isto é o som da água quente a dilatar os canos." e isso serviu-nos na altura.

A semana passada resolvemos mudar os canos. Pó, azulejo, palavrões e dinheiro entre o quarto e a cozinha. Quando o dia acabou a cozinha estava numa de brilho cerâmico e o quarto estava a ficar ferido no tijolo, violentado por martelos e escopro.

Quando acabamos, suados, doridos e ocres escuros de pó e de tijolo, pestejanámos várias vezes. Não por sono mas por incredulidade.
Durante uns minutos pensamos que havia fungos microscópicos com capacidades psicotrópicas, mas não.
De dentro do golpe aberto a golpes de martelo apareceu-se-nos um anão. Um anão mirrado, encarquilhado e seco como a pele antiga de uma cobra. Emperrado não conseguia sair da parede. Eu tirei-o e a minha mulher e o meu sogro foram buscar água e fruta.


Ele aceitou e num estranho português correcto disse: Estava a ver que nunca mais me tiravam daqui.
Quisemos saber como tinha ele sobrevivido. Disse A parede deixa entrar ar e eu tenho pulmões anões. Para comida roía a ferrugem dos canos, e como sou bem regrado e não me mexo muito, três raspadelas chegavam para me alimentar por meia dúzia de dias. A água bebia quando quisesse, era só alargar os canos um pouco que ela vertia. O pior era as fezes, que vinham sempre ferrosas, mas que como não como muito não cheiram mal por aí além.

Perguntamos como é que ele tinha ido ali parar e parece que foi coisa da PIDE.

Quando acabou a fruta, perguntou onde era a janela. Disse que apesar de cego pela luz queria ar puro.
Indicamos-lhe o caminho, de mão nossa nas costas outrora emparedadas.
Quando lá chegou, abriu as asas e voou.

A ferida na parede ficou para sarar amanhã.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Tocar para Sentir


A inexistência.

A inexistência de conversa, a inexistência de planos, a inexistência de carícias, a inexistência de paixão a inexistência de um futuro.

Era assim que este casal vivia o dia a dia. Sem filhos e com empregos estáveis não havia muito mais pelo que lutar. A casa era arrendada ao tio dela a preço de liquidação total numa loja chinesa.
A comida era comprada fora ou enlatada. Cozinhada apenas quando uma das sogras cozinhava. A televisão passava séries para os dois, desporto para ele e canais do cor de rosa para ela. É cliché, mas é verdade, não me julguem, apenas transcrevo o que imagino.

Ele ia ao ginásio e ela também, mas a ginásio diferentes. Só jantavam juntos ao sábado, porque à sexta ele tinha poker e ela unhas e pelos do sovaco para tratar.

Nos jantares de sábado falavam, mas pouco. Está insonso Está bom É enjoativo É perfeito Nunca comi nada assim Foi caro Não comas já deixa tirar foto Acho que vou pedir um whisky Então eu peço amarguinha. O regresso era feito em silêncio no carro ou em silêncio para o sofá\cama.
(Já) Não se tocavam a não ser num acto nojento e mundano: Ela gostava de lhe espremer os pontos negros.

Ele, que ainda a amava, sentia-se pronto para a vida quando a pele se lhe doía agudamente por entre as unhas dela. Ela só via pus e sujidade a ser limpa. Ele ainda se entesava, mas envergonhava-se porque era um porco, dizia ela. Ela já não o amava, mas como não gostava de ler nem de o foder, espremia-o.

Com a pele aqui e ali avermelhada e com as mãos desinfectadas adormeciam por entre um beijo de boa noite.

Ele ainda se sentia pronto para a vida quando adormecia, e acordava já meio mortificado. Ela estava sempre distante e vazia, como se fosse sempre o oceano onde a vista o deixa de alcançar. Ele desejava sempre ter a pele oleosa e ela desejava sempre ser feliz na câmara do telemóvel.

Uma noite, uma certa noite, ele tinha uma borbulha no peito, junto ao coração.

Ela enojou-se, mas encorajou-se. Ele curvou-se com a dor para depois aproveitar o toque da mão dela, a força do seu antebraço por todo o peito, o peito dela a roçar-lhe a barriga, a anca dela a tocar a sua. Por momentos pensou que ela o podia beijar ali mesmo, e ele a abraçá-la com força, jovial e normal.

A dor foi tanta que morreu ali. Foi tanta pressão no seu peito que o seu peito parou.

Morreu ali, de excesso de amor.

sexta-feira, 22 de março de 2019

A Dançar a Dançar

Naquela noite ela estava na cidade grande. Era suposto ir jantar com amigos e ficar em casa a contar histórias da vida. A chorar agora e a rir depois.
Naquela noite ela estava vestida para ficar. Camisa grunge em 2019. A moda da estação não estava de moda no corpo dela.
Naquela noite havia uma outra gaja que queria sair. Precisava de sair. Ela não queria, estava confortável.
Naquela noite ela acabou por se deixar vencer e deu o seu “vá, bora lá” enfadado mas despreocupado.
Aquela noite que estava agora a começar. Foram aqui e ali, e acabaram naquele sítio da moda, ao contrário da sua camisa.
No dia antes ele queria ir sair na noite seguinte. Precisava de sair. Ligou ao gajo a quem liga de vez em quando. O gajo a quem ele liga de vez em quando é um amigo, culto, parvo e irrequieto.
No dia antes acertaram agulhas e ele aguardou. O gajo ficou de ligar na noite seguinte.
Na noite seguinte o tal gajo ligou. Ele tinha ficado à espera e estava quase a desistir para o sono, mas acabou por vencer a letargia e deu o seu “vá, bora lá” entusiasmado e despreocupado.
Na noite seguinte ele foi para o sítio da moda, mas saiu de para ir para outro sítio da moda. A moda nele pouco interessa. É desleixado demais para pensar nisso.
No sítio da moda ela estava a dançar, a rir com amigos e amigas. Despreocupadíssima.
No sítio da moda ele entrou a medo. É um snob musical. Não que ache que tem melhor ouvido que os outros, mas sim porque apenas se diverte se a música lhe agradar. Agradou-lhe. No sítio da moda ele estava agora a dançar despreocupadíssimo.
De copo de vinho na mão, equilibrado na medida do possível equilíbrio de ritmos latinos dançantes, ele desequilibrou-se quando a vislumbrou. O vinho equilibrou-se pq os pés estancaram na medida em que a pulsação aumentou. Ele deve ter ficado ali parado um mero segundo, mas na cabeça dele pareceu que tinha ouvido a Stairways to Heaven de fio a pavio.
Desviou o olhar que não foi correspondido e tentou esquecer. Não tinha a lata nem a arte de falar com miúdas na noite. Mas de quando em vez lançava o olhar e uma vez houve em que se cruzou com o olhar dela.
Foi olhando dançando e a noite passando.
O álcool foi pesando e ele teve necessidade de se encontrar com uma amiga na fila dos lavabos (utilizamos aqui esta palavra porque não foi o melhor substantivo que encontramos para tão lúgubre espaço social), saber dela e das suas viagens e ela estava ali.
Ela estava na infame fila dos lavabos (desculpem o término uma vez mais. Obrigado) e ouvia falar de viagens para a América, e amizades tratadas a palavrões e abracinhos e ficou quase com ciúme da cena.
A amiga dele abriu a porta e ela ficou ali pendurada na luz branca de um escuro espaço da moda.
Ele  topou-a novamente, voltou a tremer mas sentiu-se corajoso. Tocou-lhe no braço.
Ela sentiu um toque no braço mas não se assustou porque aquela expressão a tinha visto antes.
Ele disse… ela ouviu… ele desapareceu… ela espantada… ele atabalhoado… ela corada e vaidosa.
…“és muito gira” … disse ele… “és muito gira” ouviu ela.

terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Passos de Dança a Arder


Hoje lancei fogo a uma barraca.
Tudo aconteceu quando vinha do almoço, mesmo antes do relógio bater as 14h, que é a hora de entrada aqui no trabalho.
Acreditem que nem foi por maldade. Não sei quem era o proprietário do tugúrio, portanto causas como a xenofobia, a homofobia ou outra estão excluídas. Na verdade nem sei se era habitado. Não me preocupei. Provavelmente estava abandonada há anos ou servia de esconderijo para traficantes de droga.
Voltando à narração do acontecimento, tudo aconteceu perto das 14h. vinha caminhando desde o restaurante até ao escritório e o olhar relembrou-me daquelas barracas no meio do pequeno vale que se afunda perto de onde trabalho.
Estava algum calor, e eu estava aborrecido. Tinha comido demais e não me sentia confortável na minha roupa. Acendi um cigarro.
E ao acender o cigarro, ao sentir o calor do isqueiro e o fumo do tabaco lembrei-me que tinha saudades de um incendiozinho. O Inverno tinha sido muito chuvoso.
Então esperei pelo momento em que não passassem carros, galguei meio vale e acendi umas ervas secas ao lado de uns pneus já ressequidos. Foi o suficiente.
Voltei a galgar meio vale e encaminhei-me para o trabalho como se nada se tivesse passado.
Passado uns cinco minutos começaram-se a ver leves levadas de fumo negro. Depois pesadas levadas e depois um forte jorro negro começou a precipitar-se sobre o azul celeste.
Foi um instante até polícia e bombeiros aparecerem.
Foi só nessa altura que o meu dia melhorou. Na verdade foi aí que o meu dia ficou perfeito.
É que assim que me apercebi da chegada das autoridades competentes para apagar fogos e tomar conta da ocorrência apressei-me para rua, meti-me em tronco nu e dancei ao som e luzes das sirenes.

Completei-me.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Mudar a Escrita

Hoje não vos invento nenhum conto. Hoje falo de mim.
A verdade é que em muitas das estórias que escrevo alguém acaba morto ou mutilado, e isso já deixou de ser surpresa. Quem me lê já espera por isso, apenas não sabe como é que o fatalismo acontece.
A minha mãe já me disse que o que eu escrevia era demasiado violento e algo previsível.
Houve até alguém que me perguntou porque não escrevo sobre amor de uma forma bonita, e eu disse que tinha aquela história do autocarro, que é fofinha, mas que na verdade não há grandes histórias de amor perfeitas. Vejamos o exemplo do Drácula ou do Romeu e Julieta. Nessas o clímax não acontece no final. No final apenas há infortúnio, pranto e fenecimentos.
É isto ou Nicholas Sparks.
E escrever sobre coisas más cria um espanto na pessoa. Acho que nos habituámos aos sentimentos positivos. Acho que o aceite é uma vida e uma estória livre de crueldades e malvadezas, mas quando nos deparamos com elas, com essas verdades, o nosso meão sentimentaloide dispara umas quaisquer hormonas ou proteínas ou seja lá o que for, e espantamo-nos, revoltamo-nos, enojamo-nos.
É por isso mesmo que gosto de escrever em negro, de acabar as estórias como devem acabar: em mortandade ou em pathos. É assim que acabaremos todos um dia. Mortos. E muito provavelmente a sofrer e\ou a fazer sofrer.
Mas por todas estas almas que me interrogam eu resolvi experimentar de forma mais íntima a maneira como escrevo, torna-la biográfica, mais vívida.
É por isso que antes de escrever isto eu ingeri um copo de veneno.
Veneno dos ratos misturado com bagaço, para disfarçar o sabor, mas não a cor.
E a verdade é que já sinto uma febre fria e já não sinto o respirar nem as pernas.
Aliás, respirar é cada vez mais difícil.
Acho que não consigo acabbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Sonhos Realizados

Perguntaram-lhe pelo mundo onírico. Pelo seu mundo onírico.
Começou tartamudeante e dizer que só queria ser feliz, que queria ter um bocadinho mais de dinheiro para não ter que dividir casa com uma italiana universitária e para que pudesse viajar até à Tailândia. Que gostava que as pessoas conduzissem melhor e que o metro funcionasse melhor.
Insistiram. Perguntaram (ou pediram?) por algo mais pessoal, menos geral. Toda a gente quer que o metro funcione melhor, argumentaram.
Então ela mordeu o lábio, enrubesceu e disse baixinho, como a Cinderela da canção: “Quero ser feliz. Quero alguém que me queira mais feliz do que desejo para mim, e que a minha felicidade transborde para ele.”
“Quero ser lamechas, quero que numa tarde fria de Outono, num passeio à beira mar as ondas do meu cabelo sejam as mais audíveis, e que a espuma no areal seja menos importante que a espuma dos nossos dias. Quero que ele me feche o fecho do vestido de noite e quero que ele se embebede com o vinho que escolhi para o nosso piquenique à lua cheia.”
“Quero fugir de mosquitos de mão dada e gozar quando ele, na sua forte masculinidade, se queixar porque fez um golpe no dedo ao cortar cebola.”
“Quero acordar nua com o pequeno almoço pronto e quero despi-lo sem a obrigação de que nessa noite tenhamos sexo.”
“Quero que ele me ampare bebedeiras e quero estar ao lado dele no Marquês mesmo sendo eu do Sporting.”
“Quero fazer shotgun a conduzir daqui para Aljezur e parar a meio só ele para me comprar flores que vão fugir pelo vidro aberto.”
“Quero vê-lo a adormecer no meu colo e quero senti-lo a acordar horas a seguir.”
“Quero a simplicidade de uma complexidade. Quero sorrir todas as manhãs quando ele me beija.”
“Quero ajeitar-lhe o nó da gravata antes de uma entrevista de emprego e rir ao ver quão feios ficamos em fotos de casamentos de amigos.”
“Quero que me proponha coisas parvas e infantis, como saltar a vedação de uma escola só para jogar à macaca ou furar a entrada num qualquer museu.”
“Quero essencialmente tudo isso e que a italiana vá mais vezes a casa.”
Acabou exausta, emotiva e apaixonadamente deslavada. Quase chorava e mordia novamente o lábio.Antes que alguém pudesse falar outro alguém barbudo irrompeu na sala e perguntou: o workshop de cozinha afegã é aqui?

Ela riu alto.