sexta-feira, 22 de março de 2019

A Dançar a Dançar

Naquela noite ela estava na cidade grande. Era suposto ir jantar com amigos e ficar em casa a contar histórias da vida. A chorar agora e a rir depois.
Naquela noite ela estava vestida para ficar. Camisa grunge em 2019. A moda da estação não estava de moda no corpo dela.
Naquela noite havia uma outra gaja que queria sair. Precisava de sair. Ela não queria, estava confortável.
Naquela noite ela acabou por se deixar vencer e deu o seu “vá, bora lá” enfadado mas despreocupado.
Aquela noite que estava agora a começar. Foram aqui e ali, e acabaram naquele sítio da moda, ao contrário da sua camisa.
No dia antes ele queria ir sair na noite seguinte. Precisava de sair. Ligou ao gajo a quem liga de vez em quando. O gajo a quem ele liga de vez em quando é um amigo, culto, parvo e irrequieto.
No dia antes acertaram agulhas e ele aguardou. O gajo ficou de ligar na noite seguinte.
Na noite seguinte o tal gajo ligou. Ele tinha ficado à espera e estava quase a desistir para o sono, mas acabou por vencer a letargia e deu o seu “vá, bora lá” entusiasmado e despreocupado.
Na noite seguinte ele foi para o sítio da moda, mas saiu de para ir para outro sítio da moda. A moda nele pouco interessa. É desleixado demais para pensar nisso.
No sítio da moda ela estava a dançar, a rir com amigos e amigas. Despreocupadíssima.
No sítio da moda ele entrou a medo. É um snob musical. Não que ache que tem melhor ouvido que os outros, mas sim porque apenas se diverte se a música lhe agradar. Agradou-lhe. No sítio da moda ele estava agora a dançar despreocupadíssimo.
De copo de vinho na mão, equilibrado na medida do possível equilíbrio de ritmos latinos dançantes, ele desequilibrou-se quando a vislumbrou. O vinho equilibrou-se pq os pés estancaram na medida em que a pulsação aumentou. Ele deve ter ficado ali parado um mero segundo, mas na cabeça dele pareceu que tinha ouvido a Stairways to Heaven de fio a pavio.
Desviou o olhar que não foi correspondido e tentou esquecer. Não tinha a lata nem a arte de falar com miúdas na noite. Mas de quando em vez lançava o olhar e uma vez houve em que se cruzou com o olhar dela.
Foi olhando dançando e a noite passando.
O álcool foi pesando e ele teve necessidade de se encontrar com uma amiga na fila dos lavabos (utilizamos aqui esta palavra porque não foi o melhor substantivo que encontramos para tão lúgubre espaço social), saber dela e das suas viagens e ela estava ali.
Ela estava na infame fila dos lavabos (desculpem o término uma vez mais. Obrigado) e ouvia falar de viagens para a América, e amizades tratadas a palavrões e abracinhos e ficou quase com ciúme da cena.
A amiga dele abriu a porta e ela ficou ali pendurada na luz branca de um escuro espaço da moda.
Ele  topou-a novamente, voltou a tremer mas sentiu-se corajoso. Tocou-lhe no braço.
Ela sentiu um toque no braço mas não se assustou porque aquela expressão a tinha visto antes.
Ele disse… ela ouviu… ele desapareceu… ela espantada… ele atabalhoado… ela corada e vaidosa.
…“és muito gira” … disse ele… “és muito gira” ouviu ela.

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