sábado, 9 de julho de 2011

Ela não ri(a)

Dois pés, defendidos por sandálias rosa, desciam calmamente a rua. Suportavam o peso leve de um corpo bamboleante e belo.
O cabelo em tons de escarlate era como um pêndulo ao passo de cada passo.
O seu vestido florido, fresco dava a ideia de um ameno amanhecer, aos sons da Natureza. O braços longilíneos ao tronco e aos passos suavizavam a sua passagem.
"Ora ali vai uma bela mulher", diziam em volta vozes masculinas e femininas. Eles desejavam-na, elas desejavam ser ela.
Ela, despreocupadamente, fazia que não entendia a origem desse desejo.
Os outros não sabiam o fardo que ela carregava: o de não sorrir.

Ela não sorria, mesmo quando encontrava algo ou alguém com piada. Ela escondia esse facto do mundo, daquele que outrora foi o seu mundo.
Antes ela teve amigos, que não soube manter. Antes ela teve namorado, que não acreditou ter.
Ela escondia a ausência de sorriso com lamentos e amuos.
Aos falsos sentimentos expressados dissimulava-os com aparência.
Por esconder o não sorriso começou a obcecar-se com o corpo, com o ginásio. Queria parecer de bem com a vida a si mesma. A crença na compreensão perdeu-a quando ao se defender os perdia.
A sua sala, sempre cheia de solitude, era um ginásio improvisado.
O dinheiro que ganhava no call-center desperdiçava em veleidades vaidosas. Hoje uns sapatos caros, amanhã um vestido ainda mais caro, ontem um fato provocante.
Quase toda ela era elegência, porém o infeliz segredo escondido por detrás de negras e falsas emoções cauterizaram-lhe a personalidade.
Porém, nem sempre fora assim. Houve um tempo longíquo onde o riso aparecera e fertilizava em sua volta.
Esses dias cessaram algum dia. Num dia em que as lágrimas lhe jorraram pelos olhos, e cairam pelas faces, queixo, algumas descendo o pescoço até ao peito.
Esse dia foi o da separação. A separação da sua irmã siamesa.
Ao ser-lhe arrancado meio-ser também lhe arrancaram o riso, sem porém lhe terem arrancado a felicidade. Apenas deixou de a saber expressar.
Quando pela primeira vez não riu chorou, chorou durante três dias e quatro noites até se ter esquecido do que lhe caíra no goto.
Quando esqueceu percebeu que a alegria e a felicidade lhe iriam passar ao lado, lhe teriam que passar ao lado.
Decidiu deixar de ser feliz. A felicidade não partilhada era assim acessória.
Hoje, ao descer a rua, tinha isso como certo.
Hoje, enquanto descia a rua, parou. Parou à escuta do que diziam em sussurro e ouviu.
Hoje ouviu com orgulho e não com indiferença.
Voltou a sentir o desejo secreto de sorriso, e tentou soltar o sorriso, mas não conseguiu, mas pouco se importou. Estava efectivamente contente com o desejo caprichosos dos homens e com o desdém das mulheres.
Decidiu-se.
Chegou a casa.
Chamou pela irmã decepada.
Decepou-lhe um dedo, lambeu um pouco do sangue derramado pela tábua de cozinha e sorriu, e riu, e riu por todos os dias em que não riu.

"Quem teme o sofrimento sofre já aquilo que teme." - Michel de Montaigne

http://www.youtube.com/watch?v=WQ0NBKqQ4ys