sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Amor de Embarque

Mais um aeroporto, mais uma cidade. Talvez uma repetida.
Mais pessoas de um lado para o outro.
As solitárias chamam-me a atenção.
Sempre que partilho o meu tempo de espera com outra almas solitárias no cais de embarque ponho-me a imaginar uma linda história de amor. Nem sempre regular.
Hoje escolhi uma mulher grande, tatuada e com ar de má.
Imagino esta massa de gente sisuda e pintada num enorme abrir de abraço, num sorriso maior e num aperto feliz e íntimo. Dentro da amarra braçal um rapaz-homem de camisa azul clara, mangas arregaçadas e delgado de corpo. Os seus olhos brilham como só de vez em quando. Ele tem na mão uma mala daquelas que os arquitectos usam e uma cidade cosmopolita como pano de fundo.
Decido que ela trabalha em moda, e que é ultra-talentosa, mas como não é forma de moda apenas chegou a costureira de topo. Ele deve ser arquitecto, tem um nome composto mas não tem cabeça disso. Decidiu ir viver para a cidade que eu vou visitar em breve, mas deixou metade da vida aqui, mesmo que os pais dele não aceitem.
Lutam dificilmente contra o afastamento, e é isso que torna tão belo o abraço apaixonado criado por mim.
Vejo-os a chamar um táxi de mãos dadas e tão apertadas que os nós dos dedos estão brancos.
Devem seguir para o apartamento dele nos subúrbios. Melhor, vão para a baixa boémia da cidade, passar 2 noites numa casa partilhada e num quarto semi-exíguo.
O cheiro do quarto passa de ambientador caro para sexo apaixonado e carícias ao acordar.
No domingo ela volta, ele fica e sorriem à despedida com juras de amor eterno.
Quase sinto ciúmes da minha imaginação, até que ao anunciar altifalante do embarque eu volto a mim e à minha vida e recordo que te tenho, e que me fazes mais feliz do que este casal alguma vez será. Que é por ti e pelas tuas imperfeições matutinas que o meu coração faz um batimento extra por minuto. Que é por ti e pelos teu perfume natural que os meus olhos se fecham pelo menos três vezes num dia.
Que é por ti que eu existo e que invento histórias de amor nas pessoas dos outros, só para que todos eles tenham algo parecido ao que nós temos.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vida Vazia

         Tu eras daquelas gajas perfeitas. Cabelo louro, bem tratado. Lábios naturalmente carnudos e uns olhos verdes esmeralda. Tinhas a pele levemente morena e um pescoço esguio.
As tuas mamas, ui, as tuas mamas. Grandes, mas não em demasia, debaixo dos tops e camisolas decotadas e das camisas desabotoadas. Tinhas uma cintura fina e um rabo perfeito. Alguns de nós ainda desconfiávamos que era das calças, da magia da ganga, até te vermos na praia com os teus bikinis.
Tinhas as pernas magras mas um pouco tonificadas.
Eras tudo aquilo que qualquer gajo sonhava comer, mas que só alguns podiam.
Moravas num bairro do subúrbio e trabalhavas como secretária num escritório de advogados. Mas na verdade nenhum homem queria muito saber disso. Estávamos mais interessados em pagar-te um jantar e levar-te para o quarto. O nosso ou o de um hotel mais ou menos fino, para alimentarmos o nosso ego e te mostrarmos como troféu aos outros. O destino era uma foda brutal. Ou a esperança disso.
Um dia, mais tarde, os outros também te passaram a cobiçar. É que se antes eras mais que boa, com a tua roupa de pouca qualidade e as calças compradas nos centro comerciais, agora, com os vestidos e jóias falsas que os teus amantes te ofereciam, elevaste a fasquia. Passaste de vaca de advogado, jornalista ou do engenheiro para passares a ser cobiça de sócios de escritórios, directores de informação ou de um outro político promíscuo. E pouco te faltava para seres a puta dos patrões.
Tu adoravas. Presentes aqui a cair a jorro. Sentias-te importante, poderosa. Sabias que nas horas que estes gajos estavam contigo, as mulheres estavam em casa acreditando em horas extraordinárias e a ver novela.
Eras presença nos jantares de gente importante, que comprava roupa em Nova Iorque, e por medida. Ouvias pequenos segredos de Estado que não compreendias, nem querias porque te faltava aquela mala na toilette, e isso era o que mais te interessava.
Entediavaste quando te levavam à ópera, porque tu querias era uma discoteca.
Tu até podias ser daquelas gajas boas e invejosas, mas não eras. Tinhas o teu grupo de amigos, que te tinham em boa conta, simpática, divertida. Alguns dos teus amigos admiravam-se por tu não teres ainda namorado, ou namorada. E tu havias de responder sempre que não tinhas tempo, que trabalhavas muito, e que gostavas mais de compras e de sair do que de homens.
Eras assim, levavas uma vida conto de fadas para adultos. Para um novo casaco, um novo hotel, para uma prestação da casa, uma queca.
Ias indo feliz, consumista, inserida na esfera da influência que não tinhas noção que existia. Sentias-te importante mas não te gabavas. Sabias que o Dr S… decidia sobre a taxa de juros, mas tu nem sabias o que era o juro. O Eng. D… queria a estrada ali mas tu nem sabias onde o ali ficava.
Mas o teu tempo passou. As veias das mãos começam a dar um ar da sua graça. A cara, que foi outrora queimada pelo sol, começa a mostrar as suas manchas. Tens pequenos papos debaixo dos olhos e rugas na testa. Começam-te a aparecer as primeiras brancas.
Estás-te a reduzir à meia idade, mas infeliz, porque até aqui não te deste conta que o tempo passava.
Os gordos que te alimentaram e te comeram agora cagam-se para ti.
Agora, à beirinha dos 40 anos vês-te sem gajos que te paguem um copo ou as jóias. Os que contigo se deitaram agora desprezam-te. Passam por ti nos novos carros. Alguns deles tu ainda conheces os bancos sujos de orgasmos. E se algum deles te vir na rua, faz que não te conhece.
E na realidade já não te reconhece. As tuas nádegas firmes já não existem. As mamas falsas e tesas que te deram estão deslocadas do teu corpo flácido e gasto.
Agora, que na raiz dos teu cabelos estão a aparecer brancas e que os teus amigos não entendem a tua depressão, tu apercebeste-te de uma coisa:
O teu coração está vazio.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Um Novo na Multidão

Já na rua notei que toda a gente tinha o olhar esquisito. Parecia que a sombra que por vezes a fronte provoca fosse hoje mais forte em toda a gente. Em toda a gente.
E parecia que essa sombra os cegava, mas de uma maneira esquisita.
As pessoas passavam por mim, desviavam-se de mim, mas sentia-se uma aura de indiferença, uma neutralidade.
Não houve uma troca de olhares, por mais que eu tentasse trocar o meu.
O dia estava cinzento, algo chuvoso. Tudo para onde eu olhava tinha esse tom grisalho.
Olhei mais atentamente e as roupas eram todas praticamente iguais: os homens de sobretudo cinzento, sapatos finos mas já gastos, fatos escuros e gravatas monotom; as mulheres usavam sapatos de cunha, roupa de escriturária e transportavam malas na mão direita. Ninguém tinha jeans a não ser eu e um mendigo. Mas as deste estavam rasgadas e sujas.
Desço para o metro e as filas são pouco agitadas e silenciosas. Toda a gente seguia uma ordem imaginária e todos tinham o dinheiro certo.
Pensei que estava num sonho ou pesadelo, e na tentativa de despertar mandei-me contra o multibanco. O resultado foi uma dor no ombro.
Sentei-me na primeira carruagem do metro, de costas para o caminho. Os meus concidadãos estavam a ler livros com a capa protegida e não consegui deslindar se liam Zola ou a colecção Arlequim. Alguns deles mexiam no telemóvel ou no tablet. Ninguém falava ou levantava a cabeça.
Um minuto antes de ser anunciada a estação, um punhado de gente levantava-se e alinhava-se para a saída.
Por azar ou sorte a minha estação era a terminal e tive de ver todo aqueles repetitivo espectáculo.
Tudo isto me parecia desconcertante. Esta ordem crua e distante. Vazia de sensações, de sons, de vida.
E mais estranho me pareceu por eu, em 40 anos de vida nunca ter reparado nisto. Não achei que o mundo tivesse mudado literalmente da noite para o dia. Ainda assim segui o meu percurso como sempre.
Quando o metro parou lembrei-me que tinha deixado a roupa espalhada no chão da sala do meu T2 e que por cansaço de qualquer origem adormeci pesadamente.
Esbugalhei os olhos e sorri: Ontem não vi o jornal da noite.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A Vida de cada Um

Casa. A vida.
Entrar pela porta. Janela fechada.
Cortinado, Sol, roupa a secar, roupa dobrada e cheirosa, guarda-fatos e factos, abarrotar, amarrotar.
Chão, tapete, sofá, TV, controlo TV, aparelhagem, router, telemóvel, carregador de telemóvel. Tomada, extensão, frigorífico, extensão da vida.
Frigorífico, comida, fogão, café, WC. Sanita, banheira, quiçá bidé. Espelho, champu, mousse, máscara, laca, amaciador, trangas, tantas trangas.
Amaciador da roupa, roupa na máquina. Dinheiro, Bolas!! gancho do cabelo, gancho? pente, escova, fio, anel anel anel anel anel, fio fio fio fio, pulseira vezes 14.
36 pratos, 23 copos, 7 já partiram, 10 individuais, talheres multi-étnicos.
Viagens, fotos, computador, redes sociais. Emojis e famosos. Aceitação.
Pessoas: solidão.