terça-feira, 25 de outubro de 2011

caminho às costas

Ele tinha acabado de sair de casa. Entrou no seu carro, no seu caquético carro e seguiu caminho velozmente.
Fora arrancado do seu Domingo caseiro por uma chamada telefónica. Zé, seu amigo, ligara-lhe a dizer que havia confusão na tasca com o seu pai, já trôpego de álcool.
Já não era a primeira vez que acontecia.
O caminho fugia aos soluços por debaixo do carro. O caminho era feito de cor. Curva à direita, curva à esquerda, recta de 4 quilómetros e chegava-se à Taberna da Guiomar.
Quando o carro parou, branco de coloração, um rapagão saiu lá de dentro. Já se habituara a ver aquele triste espectáculo.
Uns copos partidos à entrada da Taberna, o cortinado esparramado no chão e o seu pai sentado e ataviado numa cadeira de pau.
As faces do Sr André eram rosáceas de derrames, o cabelo escasso e desalinhado. As pernas, fracas e agora dobradas continuavam a tremer. Notava-se o cheiro acre de urina e o colete de renda era um misto de branco e tinto. A camisa jazia na mesa, enrolada em si própia como que amedontrada.
O silêncio da Taberna era violentado pelo ulular ébrio do Sr André.
Eduardo tocou ao de leve na bóina, os olhos agradeceram e as mãos levantaram habitualmente o pai.
Os seus ombros, calejados e robustos agarravam o débil pai.
Enfiou-o no velho carro como pode, ajeitou-lhe o cinto de segurança e endireitou-lhe a cabeça. O Sr André injuriava por injuriar, ofendia vivos e mortos mas não o vinho.
O caminho feito de cor agora ao contrário foi fácil de fazer. o velho adormeceu.
Ao chegar ao destino a cena repetiu-se. Filho ampara Pai, fria e meticulosamente. Deita-o na cama, descaça-lhe as botas e põe-lhe um penico à beira não vá o vinho jorrar azedo e às recuas.
O sono chega de imediato ao Sr André, e ao Eduardo chega depois de arranjar a roupa de trabalho do pai, de aconchegar as botas ribatejanas, de preparar o almoço ed o conduto...
Adormece à luz da vela, cabeça apoiada no punho fechado e telefonia ligada nos fados.
Amanhã é dia de Fado, do mesmo Fado

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Mãos à Obra

Ando ausente do mundo, como uma sombra em noite de Lua nova.
Ao meu redor apenas o breu, e de mim apenas escuridão. Os dias para mim são de trovoada, pesados e barulhentos, tristes e com o céu a desfazer-se em pedaços por aqui e ali.
A chuva que me inunda o caminho não me molha, mas disfarça as minhas lágrimas.
Fiz da tristeza o meu ecossistema. Negra é agora a cor dos meus dois lados.
Como cheguei a este ponto pergunto-me eu e já quase me esqueço da razão, que na verdade não tem razão de ser.

Um dia, há muito tempo, ou há pouco, já não o sei, porque o calendário deixou de o ser em mim, uma criança passou por mim a chorar.
Por ela estanquei o meu passo e segurei-a forçosamente pelo braço.
A sua rota roupa e a sua suja cara, cicatrizada de lágrimas recentes a escorrer pela sujidade da sua pele fizeram-me pena.
Recordo-me agora que lhe perguntei porque estava tão suja e pela mãe.
Ela não respondeu com palavras, limitou-se a agarrar o meu pescoço com tanta força quanto podia.
Ainda mal sentia o abraço da criança e já sentia uma forte pancada na nuca. Contorci-me em dores e vi a cara do meu agressor. Uma senhora de jovem idade, olhos encovados, cabelos negros oleosos e em desalinho. Um joelho esfolado e uma expressão resumiam aquela pessoa qua ainda mantinha a arma no punho fachado. Um maço de alvenaria.
Revi o maço bem de perto, perto demais e adormeci de um baque.
Quando abri de novo os olhos o chão brutalizava-me as costas, enquanto na cabeça me latejava a dor.
Tentei içar o peso do meu corpo pelos membros e a custo consegui.
Quando, de pernas trémulas tentei entender o "onde" o "quando" e "porquê" vi que ao meu lado esteve deitada a tal criança de sexo indefinido.
O chão que para mim fora doloroso era para ela escarlate. Quis restituir o abraço, e quanto mais me aproximava mais sentia o frio e o cheiro férreo a sangue.
A seu lado, vil arma, o maço. Toquei-lhe. Estava fria de morte... DE MORTE.
A criança estava morta, suja e rota.
O seu pequeno e infeliz crânio aberto de lado. O sangue na têmpora era acastanhado e seco. As palmas das mãos, amareladas, estavam viradas para o céu, e um sorriso bailava ainda no seu rosto.
Parecia feliz aquele morto, aquela criança ali morta, violentamente morta.
Voltei a levantar-me, apoiando-me no joelho.
Não me preocupei, afinal de contas aquela criança não era minha. Deixei-a morta na estrada, com o seu sorriso mortificante e mortificado.
Agarrei no maço e guardei-o na manga do casaco.
Assim que dei um passo a chuva lavou a criança, o chão e molhou-me o tutano.
Amaldiçoei o abraço. Não fosse ele eu estava seco em frente a um balcão de um qualquer bar a beber um whisky de malte (o meu preferido) e a ver a bola.
Aquele maço era agora a minha vingança.
Desde esse dia escondido na manga do meu casaco.
Amaldiçoei-me por causa da minha compaixão. A minha própria maldição trouxe-me o Inverno só para mim.

Hoje, a sós com a chuva indiferente para mim encontro o fim da maldição.
À minha frente a figura com as pernas escalavradas e com o olhar tão negro quanto o seu cabelo. Parada, de pernas abertas, a chuva caía-lhe lentamente pelo vestido negro em forma de gotas.
Agarrei fortemente o cabo da vil arma. Passo a lente passo aproximei-me dela. Ela nem um movimento.
Levantei o maço a meia altura e chamei-lhe Morte. Pedi, misericordiamente, que guardasse enfim a sua arma.
Ela, em movimentos estudados durante eternidades, levantou a sua magra e pesada mão e aceitou-a de volta.
O Sol (ou seria a Lua?) tornou a aparecer-me diante.
O baque que outrora dolorosamente me adormeceu agora voltou.
O maço acabou o seu trabalho e matou-me ali mesmo.
O sorriso apoderou-se de mim, morto, e o brilho dos meus olhos voltou por instantes.

A minha maldição acabou e eu posso descansar, em fim e em paz.