quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Um Quadro Muito Conhecido.

A história que me ocupa a mente sei-a desde que ma contaram, há uns 40 anos.
Eu andava na rua a apanhar o lixo com o meu pai. Tínhamos chegado a esta terra grande uns meses antes.
Naquela altura imunda e feliz, com fome mas com a barriga cheia de pessoas e amor, falava-se muito. Pelo menos em minha casa. E muitas histórias se contavam. Umas falsas, a maioria, e outras verdadeiras, raras.
A que mais me marcou foi sem dúvida a do menino mudo que desenhava tudo.
Chamou-se Cláudio, António, Roman, Ludwig, Óscar ou Sofia. Dependia do dia e de quem a contava.
Bem, este menino mudo não terá nunca aprendido a escrever, e tão pouco linguagem gestual. Parece que a família dele era pobre e ninguém sabia ler. Não havia lápis a carvão na casa dele, apesar de todos trabalharem nas minas.
Todos os dias ele via a casa em algazarra, mas nada podia ouvir nem dizer. Percebia sentimentos. chorava ou ria conforme os outros. Começou a perceber ler gestos e olhares. Mas isto não lhe era suficiente.
Certo dia descobriu na mala roubada de um pintor várias cores e pincéis.
Rapidamente percebeu para que serviam todo aquele arco-íris.
Começou a desenhar em casa. Começou a desenhar a casa. Sem papel desenhou nas ruínas da Guerra.
O traço, sem preto, era perfeito. Desenhou a casa e todos nela com grande detalhe.
Quando todos chegaram a casa, depois do apito da mina, viram notável obra.
Choraram, cumprimentaram, beijaram e sabe-se lá mais o quê o menino mudo.
Do fundo da carteira que seria para o pão do mês resgataram uma parte para tintas, pincel e papel.
Desde este dia tudo o que o menino quisesse expressar, fazia-o no papel. E com a perfeição de um mestre do retrato.
Rapidamente tal chegou aos ouvidos dos mais poderosos e todos quiseram conhecer o seu trabalho.
Em poucos anos o menino mudo era rico, gordo mas não burguês. Vestiu a família, albergou-a em casa grande. Livrou-os de trabalhos pesados.
Um dia certa nobre figura, talvez menos egoísta que as outras, pediu-lhe que fizesse um auto retrato.
E foi um retrato tão belo que hoje em todo o mundo o conhecem: O Menino da Lágrima

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Invernia

Dias de chuva obrigam-me a recordar torradas, café com leite, rádio à luz das velas. A infância. Os mortos.
O de hoje não é diferente, mas é.
Enquanto sorvo o ar quente e cinzento pela piteira do cachimbo recordo-me desse tempo. Estou quase a tentar-me emocionar, mas não consigo.
Se o sorriso for uma emoção, então nego o que escrevi acima.
Sorrio ao som e cheiro dessas memórias.
A minha avó dizia-me que o cheiro a terra molhada não era digno se de chamar. Trazia a morte. E também não podia falar alto quando trovejava. Era deus a falar. Pena não o ter percebido.
Pois bem, hoje tenho a terra do quintal molhada e deus está a falar, e continuo a não o entender.
Afinal a minha avó tinha razão. A terra molhada chama a morte.
Vejo-a à minha frente. Magra, esguia, escura.
Na mão direita a gadanha e na esquerda ossos e obscuridade. O capuz longilíneo
Quase tento tremer de medo, mas não consigo.
Se o sorriso resultar do medo, então sou um medricas.
Se fosse há uns anos irritava-me com isto tudo! Revoltava-me estas modernices.
Hoje, já avô, sorrio e faço-me de assustado ao ver o meu neto de 8 anos vestir-se de morte.
E invejoso.