terça-feira, 21 de abril de 2020

Tocar para Sentir


A inexistência.

A inexistência de conversa, a inexistência de planos, a inexistência de carícias, a inexistência de paixão a inexistência de um futuro.

Era assim que este casal vivia o dia a dia. Sem filhos e com empregos estáveis não havia muito mais pelo que lutar. A casa era arrendada ao tio dela a preço de liquidação total numa loja chinesa.
A comida era comprada fora ou enlatada. Cozinhada apenas quando uma das sogras cozinhava. A televisão passava séries para os dois, desporto para ele e canais do cor de rosa para ela. É cliché, mas é verdade, não me julguem, apenas transcrevo o que imagino.

Ele ia ao ginásio e ela também, mas a ginásio diferentes. Só jantavam juntos ao sábado, porque à sexta ele tinha poker e ela unhas e pelos do sovaco para tratar.

Nos jantares de sábado falavam, mas pouco. Está insonso Está bom É enjoativo É perfeito Nunca comi nada assim Foi caro Não comas já deixa tirar foto Acho que vou pedir um whisky Então eu peço amarguinha. O regresso era feito em silêncio no carro ou em silêncio para o sofá\cama.
(Já) Não se tocavam a não ser num acto nojento e mundano: Ela gostava de lhe espremer os pontos negros.

Ele, que ainda a amava, sentia-se pronto para a vida quando a pele se lhe doía agudamente por entre as unhas dela. Ela só via pus e sujidade a ser limpa. Ele ainda se entesava, mas envergonhava-se porque era um porco, dizia ela. Ela já não o amava, mas como não gostava de ler nem de o foder, espremia-o.

Com a pele aqui e ali avermelhada e com as mãos desinfectadas adormeciam por entre um beijo de boa noite.

Ele ainda se sentia pronto para a vida quando adormecia, e acordava já meio mortificado. Ela estava sempre distante e vazia, como se fosse sempre o oceano onde a vista o deixa de alcançar. Ele desejava sempre ter a pele oleosa e ela desejava sempre ser feliz na câmara do telemóvel.

Uma noite, uma certa noite, ele tinha uma borbulha no peito, junto ao coração.

Ela enojou-se, mas encorajou-se. Ele curvou-se com a dor para depois aproveitar o toque da mão dela, a força do seu antebraço por todo o peito, o peito dela a roçar-lhe a barriga, a anca dela a tocar a sua. Por momentos pensou que ela o podia beijar ali mesmo, e ele a abraçá-la com força, jovial e normal.

A dor foi tanta que morreu ali. Foi tanta pressão no seu peito que o seu peito parou.

Morreu ali, de excesso de amor.