domingo, 16 de junho de 2013

Desenganos I

1.

Ao fim da manhã o sino bate a rebate. As gentes da aldeia na serra deixam-se arrebatar pelo som e pelo que vai acontecer.
No interior de cada casa agitam-se pulsos para mostrar aos olhos as horas que são, quando toda a gente sabe que a hora estava já marcada.
Os homens desta época vestem os seu melhores trajes. Jaqueta preta, camisa branca, o cordão do relógio de bolso prepara-se para brilhar na rua debaixo de um sol pungente.
As mulheres ajeitam o lenço preto de viuvez ou branco de castidade na cabeça. Um leve trabalho de renda remata o lenço. O cabelo está apertado atrás por um toco e o perfume perfumado.
As semanas são todas iguais, e os fins de semana não são piores.
De segunda a sexta o trabalho. O trabalho duro da serra. Se hoje se cava terra para as couves, amanhã fazem-se as camas para as pragas. Se para o mês que vem se talha o leite para o queijo, no mês passado apanharam-se castanhas.
Ao sábado lava-se a roupa e bebe-se copos e ao domingo aperalta-se o corpo e mente para a missa e descanso. Às vezes a telefonia chega a passar o relato da bola.
Lá na capital vive-se como a telefonia transmite, de uma forma que não se conhece nem se imagina.
Aqui o carácter é simples, trabalho, missa e sopas às escuras. A carne só em dias de festa e o peixe só de salga. Safam-se as canções do campo e os bailes magros de carne.
O prior tem a barriga cheia de mimos das velhas e das mães dos seus afilhados. A cara rechonchunda incha-se de vinho em cada eucaristia e em cada casa do seu rebanho.
E não repara que o rebanho mudo vai magro. Nem se lembra das pragas que se abateram sobre o Egipto do judeu Moisés.
O dono da maior parte dos terrenos aparece todos os últimos domingos para fazer o pagamento depois da missa. Tal como a sua prole do campo, também ele se consagra ao gordo pastor, mas não tanto.
Este não está tão magro e o cabelo reluz. As peliças, camisas e calças não estão gastas e foram talhadas à medida. A esmola que deixa no saco é curta e os almoços que paga ao prior ainda estão por fazer.
Este quer saber da carteira em vez da barriga. Deve ser por isso que as mães solteiras não lhe pegam.
No meio de tanto servilismo há um olhar que refulge. É o do Esquisito
Ele é pastor das suas ovelhas, quatro e um borrego. O terreno que tem é metade herdado, metade comprado. As couves que come plantou-as ele e regou-as a mulher. O filho que tem tem pai e padrinho, mas não é baptizado.
Esquisito está farto da pocilga em que vive, e a força branca dos nós dos dedos não o deixa entrar na igreja.
É por todos visto como o diferente o libertino, o judeu, o protestante, o amigo das putas, sem que nunca tenha tocado numa.
Esquisito não é daqui, é de um putanhedo diferente. É de uma terra onde só alguns sabem. E como ele sabe disso, aguenta os olhares desdenhosos, maldosos, invejosos.
Como D. sabe que não é daqui, apesar de aqui estar preso, cospe à passagem do gordo e levanta-se à passagem do vaidoso.
As suas roupas não são melhores nem piores que a dos outros. A sua carne é tão fraca e escassa como a dos servis, mas o seu orgulho e sagacidade é maior que qualquer um que ele conhece nas serra e além serras. Só tem igual no olhar, no toque, nas palavras da sua amada.
Naquele domingo Esquisito fartou-se. Fartou-se de ver os seus colegas de escola bajularem os patrão e os outros, desgraçados encornados ou pais bastardos, darem pouco menos do que o que tinham em esmola ao santinho..
Naquele domingo matou as ovelhas e libertou o borrego. Distribui a carne que desmanchou e vendeu as couves que sobravam.
Fez a trouxa e zarpou. Zarpou primeiro para o outro lado do seu mundo, para o outro lado da serra. Zarpou depois dali para o rio, largo e transparente.
Apanhou um autocarro e tomou lugar ao lado da sua família.
Cumpria assim o seu destino.