quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Das Vidas Pequenas

Ouvi no outro dia um escritor dizer que a ignorância é amiga da felicidade. Na altura até me fez sentido.
Pensei rapidamente nas pessoas em meu redor, naquelas que eu considerava mais ignorantes, e notei que isso era verdade.
Eles, por desconhecimento, não sabem o que é uma secret agenda, pensam que tudo o que passa nas notícias é verdade e que as melhores coisas que se pode fazer em social são falar de bola, mal dos políticos, queixar-se do trabalho e pouco mais.
De facto, comparativamente a mim a ignorância deles até me deixa algo invejoso.
A vida deles é mais leve, pensam em menos assuntos e de certeza que se aplicam mais e melhor nos interesses deles que eu nos meus 23 ofícios da cabeça.
Em contrapartida eles, que na minha arrogância, sabem menos das coisas do mundo que eu, e que deveriam ser felizes porque despreocupados, não o são.
Olho para eles e estão sempre rezingões. Aliás o que acima disse confirma-o. Só se queixam e reclamam, não aproveitam o sol ou a lua.
Os jantares fora servem para gozar uns com os outros ou para gozar com os da mesa ao lado. O humor nunca é uma coisa inocente ou geral, é sempre pessoal e agressivo.
Lembro-me do 1984 e de a esperança estar na plebe. A início também concordei, mas a prazo não. E o prazo é-o estes ignorantes.
Não há esperança na plebe, há esperança que a plebe eduque uma geração com um grande ponto de interrogação na testa e não um ponto de exclamação.
Até lá regozijemo-nos com os programas de opinião e os reality-shows e não ladremos enquanto a caravana e o rolo compressor passar.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Carros de Pressa

Chove muito à hora da sesta.
Se fosse verão e se fosse fim de semana mesmo agora dormia um bocadinho, assim com as pingas d'água a baterem primeiro nas telhas e depois no chão.
Mas agora é Inverno e é quarta-feira, e no trabalho não posso dormir sesta. Quer dizer, não é que não possa, mas depois a minha patroa também me pode despedir, não é assim?
Trabalho na oficina geral de uma empresa de táxis, e trabalho não falta, mas faltam peças e a gente (eu, outro e um aprendiz) fazemos o que podemos com arames e restos dos carros velhos.
Os cabrões dos taxistas estão sempre a pressionar, e quanto mais chateiam, mais me atraso, que eu não volto a cara a nenhum despique. Depois arrependo-me.
Arrependo-me porque só tenho oito horas para trabalhar e uma vida para viver, e acabo a passar estas oitos horas a perder a vida e a discutir.
De resto, não me queixo de nada. O ordenado chega para comida e umas férias na terra da mulher e para gasolina. Ainda não tenho dores nas costas, mas a rótula que escavaquei a jogar à bola quando era novo já acusa a chuva.
Gostava era de ser mais instruído e perceber tudo o que dizem nas notícias. É que eu imagino que o Eng. Almeida, o deputado, fala muito bem, mas às vezes me engana. Mas é que o homem fala mesmo bem. Emprega palavras bonitas e estrangeiras. Gosto muito de o ouvir.
Parece assim um Júlio Isidro da política. Ainda deve chegar a Primeiro-Ministro. Eu cá hei-de votar nele.
Nessa altura já eu vou estar de reforma, se os que estão no poleiro agora ma derem, e vou ouvir a chuva a bater nas telhas e depois no chão, e a falar mal dos políticos e a chamar o carro de praça para me levarem ao hospital para me verem as pontadas nas costas.
Mas hoje não há sesta para ninguém!

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Caminho de Terra


A luz batia-me tão forte na cara que eu mal via o caminho.

O dia tinha acabado de nascer e o sol, ainda baixo e alvo, inundava-me a vista e cegava-me a condução.

Conduzia por intuição numa estrada que o meu carro já conhecia de cor.

Atrás deixava metros e metros empoeirados de caminhos de cabra que provavelmente de cabras só tivessem tido o nome.

Seguia a caminho da horta do Alfredo, um velhote esperto, esquivo e velho. Devia ter 130 anos, mas espírito de 80.

Ainda era ele que cavava a terra com uma enxada já gasta de torrões e pedra.

Eu ia comprar verduras, temperos e alguns legumes para levar para a aldeia. A gente lá tinha-se começado a desleixar desde que a luz chegou às ruas. Começamo-nos a deitar mais tarde porque ficamos mais tempo na rua a desdizer e desdenhar. E depois as hortas secam-se.

Para mim foi uma oportunidade. Com o meu charrueco inglês era mais rápido que as mulas dos meus vizinhos e a alface não chegava tão esmigalhada e mole.

Enfim cheguei perto do Alfredo. Parecia que me esperava, com o queixo apoiado na enxada e no pulso um cordelinho fraco a fazer de trela do seu cão Ginete, que de ginete tinha o nome, como o caminho de cabras.
 
- Bom dia!
- Bom dia Alfredo, estás bom?
- Cá vou andando. Olha, hoje não apanhei tomates. Ontem não os reguei e hoje tenho-os murchos.
- Estás sempre a brincar. Então pronto, levo o que tiveres rijo.
- Vá, a encomenda está ali no casebre. Vai lá busca-la.
- Obrigadinho. Pago-te já para não andar a parar no caminho.
- Qualquer dia, para não andares a parar no caminho ainda vais ter tudo rijo na mercearia do Judeu.
- É o progresso.

E lá me fui eu embora, a queimar gasolina e a rezar por alcatrão para o bem das molas do meu carro.
 
Hoje ainda se deve ter salada para o almoço.