segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Cruzamento

O teu rosto nunca mudou. Por mais anos que passaram o teu rosto continua o mesmo desde que te vi.
Estava um dia de festa. Foguetes, concertinas e gargalhas povoavam a aldeia xistosa normalmente vazia.
Eu tinha o quê?, dezassete anos? Devia ser.
Tu tinhas para aí a mesma idade, mais ou menos.
Lembro-me de ter corado e inspirado forte para te sorrir. Medo, cheio de medo era como me sentia.
O teu cabelo abanou um pouco com o susto de uma rusga que passava na esquina. Sem querer olhaste para mim e viste o meu sorriso. Baixaste a cabeça sem me deixares ver a tua reacção.

Hoje, homem maduro, casado e pai de filhos, dois, vou começando a perder a memória.
Os dedos estão menos lestos e a vista turva. O arquitecto que em tempos fui traduz-se hoje apenas numa assinatura e num número de contribuinte de pessoa colectiva.
Já não quero saber de foguetes nem de folclore. Na verdade já não quero saber de nada.
Hoje vejo-me com a conta bancária recheada, as viagens cliché feitas, um bom guarda-roupa, uma esposa que me ... que cuida de mim e a quem faço companhia. Dois filhos licenciados e bem-empregados.
Tenho a minha casa de campo, o apartamento no Algarve e habito no lar arrendado algures nos subúrbios.
Não me deixei ganhar barriga mas deixei-me ganhar bigode.
No fundo, agora revendo-me à miopia, fiz tudo o que um homem comum fez.
Ah, já vos disse que a minha esposa é linda e perfeita? Que continua com a cintura fina e com os olhos verdes brilhantes? Que o seu cabelo negro é natural excepto uma madeixa que lhe dá uma graça daquelas?

Agora, cansado, vejo que não fui mais do que isso: Um homem comum. Sem direito a um "H" maiúsculo.
Limitei-me a viver a minha vida certinha, tal qual um catequismo ordena.
Lamento a horta que não cultivei, os móveis que não executei, o retiro social no Mali que não fiz. Lamento ter substituído as urgências do hospital pelo meu atelier quando o mais velho partiu o Rádio ao meio.

E apesar das minhas faculdades me começarem a falhar mantenho no fechar de olhos a tua imagem e sonho com o que a minha vida poderia ter sido.
Nunca corri riscos e lamento-me. Imagino-me contigo hoje, algures numa aldeia beirã, com um Mercedes do final dos anos 80, ouro a pender-me pelos braços e pescoço. O meu cuidado bigode transformado em farto e desalinhado bigode. Tu, com trejeitos de rica desajeitada, tinhas arranjado a nossa maison da maneira mais espalhafatosa que eu alguma vez veria enquanto eu falava das obras que fiz la na France e do bem que se vive lá.
Teríamos a casa que nós construímos e o carro que comprámos com muito trabalho e privações.
Os nossos filhos seriam uns híbridos de luso-gauleses, meio grunhos meio uh la la e fariam os encantos das poucas roliças que ainda apareciam nas festas da terra.
Talvez aí eu pensasse que realmente fiz alguma coisa da minha vida, talvez eu aí me tivesse sentido realizado.
E talvez nessa realidade sonhada eu sonhasse em ser quem sou. Talvez eu achasse que se tivesse estudado teria arranjado um bom emprego, uma boa casa e uma boa família e que agora, em vez de gastar o que me resta em ornatos e copos de vinho a murro, estaria a ler um bom livro ao sol e ao vinho.

Saio do marasmo quando a chave toca na fechadura. A porta abre-se e és tu. És tu quem eu vejo, tal qual como naquela tarde de festa.
Tu sorris-me e eu recordo que o teu rosto continua o mesmo desde que te vi.
No ano seguinte voltei a cruzar-me contigo na mesma festa no mesmo sítio. Levei a minha namorada mas isso não me impediu de ir falar contigo. Na volta trouxe-te comigo e abri uma guerra com os meus pais.
Fugiste comigo e por nós para o Barreiro, entregaste-te à família e eu à faculdade.
Hoje sou um homem comum, mas com uma mulher excepcional.
Afinal de contas acho que arrisquei uma vez. Arrisquei em recordar para sempre a primeira vez em que te vi.
Antes de me levantar para te beijar marco o livro e levanto o copo vazio.

segunda-feira, 22 de outubro de 2012

Quatro anos de seca

Faz exactamente hoje quatro anos desde que não chove na minha terra.
Nós até estávamos habituados à falta de água de quando em vez, mas quatro anos é muito tempo. É tempo demais.
Ainda me lembro da última gota d'água que me aterrou na cabeça, já meio descoberta na altura. Foi uma lágrima celeste num fim de tempestade, já com arco-íris a acompanhar um sol radiante.
Sorri pela gota se ter estatelado na minha careca. Estive abrigado entre o café e o toldo da esplanada à espera que a maldita trovoada (naqueles dias maldita) se fosse.
Quando me pareceu que se tinha ido fiz-me ao caminho de casa, e lá caiu a minha última gota de chuva.

Nesses dias, como hoje, era solteiro. O tempo era meu e só meu. Se chovia ficava deitado até mais tarde, se estava sol acordava cedo. Comia o que queria quando queria. Bebia o que queria com quem queria e quando queria.
Nesses dias tinha toda a liberdade que uma homem podia ter. Ia namoriscando aqui e ali. Era um homem de sorriso fácil.
Nesses dias, menos que hoje, não era feliz

Naquela tarde de chuva, depois de ter molhado a careca ela passou por mim.
Ela era Margarida. Eu adorava-a.
Margarida tinha passo ligeiro mas não muito apressado, olhos melados e grandes, cabelo preto, comprido, levemente ondulado. Tinha cintura mas não estreita. Pernas fortes, rabo e peito bem feito. Tinha a cara um quase nada queimada do trabalho ao sol e um sorriso perfeito, que eu acreditava ser só para mim.
Nunca lhe dirigi mais do que um cumprimento.
Sempre tive muita vontade de lhe falar, mas sempre que eu pensava "é desta!" um nó no estômago atacava-me a goela e logo os polegares se punham à roda e à roda.
Conheci a Margarida na 3ª classe, quando ela chumbou, a burra. Nessa altura ela era só mais uma gaiata que andava à escola, e eu, com oito anos queria lá saber de gaiatas. Queria era ver o Benfica e roubar um "pegó-dente" na loja do Bucha.

Há quatro anos, quando ela passou por mim, eu já era um homem feito, e apesar da barba e da careca, voltei a não conseguir falar-lhe.
Ela passou, ou acenei e ela sorriu. E eu fui com vontade de pular até casa.
Quando cheguei a casa  caí em mim e fiquei a rogar-me pragas. "Ela a sorrir, ninguém na rua e eu só sei fazer um adeus", pensei.
Adormeci assim, zangado comigo e nem jantei.
Quando acordei, no dia seguinte fazia um frio de rachar e ainda mal tinha acabado o Verão dos Marmelos.
Tinha acordado decidido a ir falar-lhe do meu mal de estômago. De lhe fazer ver que a tonteira dos meus dedos era causado por ela.
Tinha acordado decidido a dizer-lhe que a queria como minha mulher e que a havia de fazer feliz para o resto da vida. Havia de lhe dizer que queria que os meus filho tivessem o cabelo dela e a minha altura.
Vesti-me, e tive o cuidado de usar a minha camisa branca e as botas menos gastas. Fiz-me ao caminho e bati-lhe à porta. Não tive resposta. "Na, ela deve ter ido ao pão ou assim", dizia de dentro para dentro.
Esperei na esquina um belo bocado até que a Velha mais velha da terra me perguntou o que estava ali especado a fazer. Disse-lhe por quem esperava e a Velha avisou-me que ela tinha ido para a cidade, para Lisboa.
Acho que nesse dia dividi o tempo entre aquela esquina e o copo de tinto que teimava em não se esvaziar.
Desde esse dia amaldiçoo-me e em vão luto contra os olhos no chão.
Tenho sido uma sombra desde esse dia que não chove. Faz agora quatro anos que a minha melhor companhia é o silêncio e por vezes, mais do que queria, o fundo do copo que agarrei faz amanhã quatro anos.

Faz hoje quatro anos que eu não vejo a Margarida, e, por mais mulheres que com eu tivesse dormido, não houve nenhuma com quem eu quisesse dividir a cama e a felicidade para sempre.
Se eu tivesse sabido que aquela maldita gota (naqueles dias e agora) era o sinal da minha tristeza, então mais valia que tivesse sido apanhado por um raio logo ali.
Mas o destino assim não o quis.

Agora olho para o horizonte e vejo umas nuvens cinzentas, que ameaçam chuva, como muitas outras já ameaçaram noutros dias, mas a esperança é vã. São só mais umas nuvens passageiras.
Está um calor do arco da velha e tenho de tirar a boina para limpar umas poucochinhas gotas de suor que já me atacam.
Sinto um frescor na careca, como não sentia à muito tempo. Como se fosse uma agulha mas fresquinha e sem dor. Ainda me lembro do que é. É uma gota de chuva.
Levanto-me a sorrir e a bendizer aquelas nuvens que afinal não são passageiras.
Como estou sozinho na rua vou ver se dou o alerta lá no café, que isto é coisa para se avisar. É assim quase um milagre.
A meio do caminho um carro de praça pára.


segunda-feira, 1 de outubro de 2012

Na Pontinha dos Dedos

- Joana? - alguém chama - oh Joana anda cá aqui dar-me um beijo e beber mais um shot. Vá lá miúda, amanhã já podes votar e conduzir. - Um risinho acaba a ordem.
Joana, bem mandada e a leves tropeções, acata a ordem. Aproxima-se dele, um amigo seu, Eduardo, e dá-lhe um beijo inocente na face.
Conhecem-se à tanto tempo que já nem fazem contas. São os melhores amigos de entre todos os que estão na festa. Nunca se beijaram apaixonadamente e sinceramente, nunca pensaram em tal.
O namorado de Joana, Miguel, não tem ciúmes e a namorada de Eduardo, já não o é. Acabaram antes de ontem.
A primeira mensagem de Eduardo após ter rompido foi para a Joana.
Nesta noite nada disso interessa. Joana é maior de idade e é altura de festejar. A casa de praia dos pais de Joana serve de anfiteatro e a música de fio condutor.
Ali, junto à praia existe um pinhal. Algumas casas à beira da estrada encontram-se em ruínas. Nunca se percebeu muito bem o porquê do abandono. Alguns dizem que é por causa de heranças, outros de maus negócios e outros que é por causa da droga e que fulano agora está preso.
Mas entre todas estas há uma que ninguém conhece de outra forma senão o abandono. Tem dono, porém nunca se soube de interessados. Tem dono porém ninguém sabe quem é.
Sabem que tem um carro topo de gama e que aparece um punhado de noites por Verão por ali.
Diz-se que a casa tem mau agoiro. Mas diz-se tanta coisa e quem conta um conto... bem, sabemos o resto.

A meio da noite, entre febras grelhadas, vinhos e shots alguém lança o repto: "Vamos à casa abandonada."
A princípio todos queriam ir. Depois uns poucos menos. No final só Eduardo, Joana e Maria alinharam.
Miguel corta-se ao início e fica perto de zangado com a aventura. Ele, racional e seguro acha que o estado das coisas pode originar pernas partidas, cabeças abertas ou algo assim. Tenta convencer aqueles três bravos a terem tino e desistirem da ideia. Vão esforço.

Então, por entre medos e risos Eduardo, Joana e Maria arrancam em direcção à casa.
Para evitarem cruzamentos indesejados com carros conhecidos tomam o caminho de mato.
Ao fim de alguns passos as silvas começam a fazer sentir-se e as roupas ficam levemente rasgadas. Aqui e ali os pequenos arranhões ajudam a fazer desaparecer o leve torpor ébrio.

As gargalhadas são genuínas ao sentir leves picadas silvestres.
Um passo à frente e Maria cai. Felizmente não é nada de grave. Apenas um joelho deitado abaixo. Mas nada que a faça deter nem sequer desacelerar.

Chegam à entrada da casa mais ou menos abandonada e não reparam no carro que está a estacionar. Um carro de alta cilindrada, preto, com vidros fumados e jantes negras.
Entram na casa e por entre as janelas destruídas o luar dá um ar da sua graça. Maria repara que o seu joelho está afinal em pior estado do que imaginara no meio da vegetação.
- Acho que não vou entrar. É melhor não arriscar entrar com o joelho assim. Se caio é a morte do artista - e mais uma risada acaba com a conversa.
Joana e Eduardo aceitam mas concordam um assobio que será um sinal se porventura algo correr mal.
Afoitos fazem-se à casa.

Do outro lado da casa um homem de estatura elevada e algo curvado sai do carro. Do banco detrás tira um chapéu de abas que segura na mão. A Lua que ainda há segundos se via limpa está agora a ser acometida por pesadas nuvens.

Maria adormeceu, fruto do cansaço e do avançar da hora. Por perto da entrada que eles usaram estava uma poltrona aos caídos que outrora teria sido majestosa. Pareceu a cama perfeita para Maria naquela altura.
A casa parecia enorme aos olhos já adaptados à escuridão dos amigos.
Perceberam, por entre luar que desaparecia, uma escada de madeira em caracol.
A madeira parecia segura, apesar dos anos de abandono. Estranharam a solidez da mesma. As paredes não estavam tão ruinosas como o exterior. Ao tacto a parede dir-se-ia envolta em pedras lisas, como se de mármore se tratasse, mas o cheiro a mofo e a humidade combatiam este frio.
Acharam estranho, sem dizerem nada, que uma casa em ruínas por fora e a cheirar a velho estivesse em tão bom estado.
Encontravam-se agora num piso superior, cujas janelas deveriam dar para o mar. Conseguiram descobrir o reflexo da lua e ficaram assim, a olhar o mar e com um leve sorriso na cara durante alguns segundos.
Lá fora Maria já tinha entrado no reino dos sonhos e balbuciava coisas ininteligíveis.

No piso debaixo uma fechadura fez-se ouvir. O sobressalto foi grande no piso de cima, mas como o som foi breve desligaram brevemente.
Desviavam-se agora da janela e um baque seco ecoou nos ouvidos de Joana. Antes que Joana pudesse assobiar (esse era a palavra passe para perigo), sentiu um cheiro que a fez perder os sentidos.

Acordou algum tempo depois. Sabia-se ainda dentro da casa abandonada. A luz era forte, muito forte e a sua cabeça zoava.
Ainda com o olhar turvo conseguiu distinguir paredes bem pintadas, brilhantes. O ar que respirava cheirava um pouco a mofo, como se fosse um sótão ou uma cave. Havia uma teia de fios. Talvez de electricidade, pensou.
Apercebeu-se que estava descalça pelo frio que o solo, coberto de lajes, lhe causava.
E continuava a acreditar que estava ainda na mesma casa.
Com a visão a recuperar lentamente e a cabeça a doer-lhe mais do que a zoar, descobriu algo parecido com um torno e uns utensílios enferrujados ao lado. Não estavam muito longe ainda assim não conseguia descortinar o que seriam.
Procurou por Eduardo assim que se sentiu um pouco mais desperta e atenta.
Não encontrou pistas dele, mas encontrou-se acorrentada a uma cadeira de pau mas confortável.
Do seu lado direito uma porta fechada com pouco mais de um metro e meio de altura. Estava entreaberta e não conseguiu descortinar nada para além de escuridão.
Ouviu passos atrás de si. Não se conseguia virar.

- Olá menina. Espero não ser indelicado, mas... qual é o seu nome?
 Joana estremeceu ao ouvir um voz clara, profunda, pesada. Lentamente viu pelo canto do olho um vulto transformar-se em pessoa.
Um homem, um pouco mais alto que a média. Vestia integralmente de negro e tinha o cabelo pintado de preto. Estranhamente pálido e de olhos azuis a fazer lembrar o Drácula de Coppolla.
A sua expressão era vazia, porém o seu olhar denunciava inquietude intelectual. Olhava em volta, perscrutava as expressões e movimentos nervosos de Joana.
As suas mãos eram grandes com as veias grossas e azuis, ossudas. Apesar da sua voz, do seu olhar, o seu corpo parecia débil, demasiado franzino para a sua altura.
- Quem está aí? Quem és tu cabrão de merda? Que fizeste ao Eduardo?
- Ah, então o jovem tem um nome. Eduardo. Um bonito nome. De origem inglesa significa guardião da prosperidade. Seria isso que ele fazia? Guardaria Eduardo a espalda de si, menina?
- Cala-te e solta-me! Prometo que não conto disto a ninguém, prometo.
- Menina, se talvez me disser o seu nome  nós acabemos com isto num instante. Sabe que a minha intenção é nada mais nada menos do que ensinar-lhe uma lição, a de que não se invade propriedade alheia.
- Chamo-me Joana. Agora por favor solte-me. A mim e ao Eduardo. Já aprendemos a lição. Por favor.
- Joana, disse? Joana, hebraico para Deus favoreceu-te. Belo. Um casal feito de bençãos e guardas. Parece que isso não foi suficiente para terem tido uma noite perfeita. Pelo menos para vocês.
Peço desculpa pela falta de educação. O meu nome é Orfeu. Pode parecer um nome forte e bonito, em desuso nos dias de hoje, mas na realidade significa escuridão da noite. Depende de si, menina Joana, acreditar se este é o meu real nome.
- Eu só quero sair daqui, por favor. Deixe-me sair.
- Calma menina, já a solto, só quero falar um pouco mais consigo e quem sabe, não vamos sair amigos, tal como a menina e Eduardo.
Um breve silêncio fez-se e então Orfeu continuou.
- Joana, eu estou mesmo curioso acerca de uma coisa. Acha que me pode ajudar a matar a curiosidade.
(soluços)
- Bem, Qui tacet, consentire videtur, então diga-me, porque vieram até minha casa? Vocês sabem que invasão de propriedade privada é um crime punido por lei. Vocês sabem que se fossem apanhados alguém, neste caso Orfeu, que diante de si fala, os poderia denunciar às autoridades. Vocês sabem que no mínimo, como são jovens e é Verão, passariam um noite na esquadra e um mau bocado com os vossos pais, certo?
- Sim.
- E diga-me, sabiam vocês que esta casa, que aparenta estar abandonada, tem dono?
- Sim.
- Ora ainda assim vocês resolveram entrar, à socapa e pelas traseiras para esta casa.
Ora fora eu um advogado e tenho um assalto, invasão de propriedade privada e vandalismo como crimes, certo?
- Mas nós não estragamos nada. Desculpe, por favor. Solte-nos.
- Já a solto menina. E quanto ao estragar, se isto fosse um tribunal a menina teria de se defender, e neste momento, bem, encontra-se de mãos atadas. (pequeno riso) Perdão pela piada, foi de mau gosto.
Mas voltando ao nosso leitmotiv, sabendo a menina Joana e o menino Eduardo que isto era contra a lei fizeram-no na mesma. A minha curiosidade é: porquê?
- Porque é o meu aniversário e achamos que iria ser divertido vir até aqui. (choro)
- Ah, o seu aniversário. Parabéns. Espero que tenha tido um bom dia. E espero que assim continue. Obviamente, dadas as circunstâncias, dependerá apenas de si e da sua disponibilidade em falar comigo.

- Sabe que eu gosto muito de jardinagem? Ao contrário do que esta casa aparenta, eu sou um incondicional dos jardins aprumados, das regas ao amanhecer e ao anoitecer, do ancinho, da pá de jardinagem, da tesoura de podar, e mais e mais.
A Joana tem assim algum passatempo, hobby, algo que goste de fazer?
- Gosto de bodyboard. (soluços)
- Muito bem, o contacto com os elementos, ar, mar, terra. Fica a faltar o fogo. (mexe nos utensílios na mesa) Mas claro, o vox populi diz que com o fogo não se brinca. Eu também gosto do ar livre, mas a principal causa do meu gosto é o fogo. Pode parecer paradoxal, mas o fogo, forjando o ferro, ambos fortes e penosos, ajudam a criar coisas lindas e úteis.
Joana, gosta, imagino de andar descalça?
- Sim (levanta olhos a medo)
- Claro, quem gosta de desportos de praia deve gostar de praia e logo de pé-descalço. Eu não. Tenho medo de me cortar em vidros ou casquinhas de marisco.
Reparo que se mantém calçada. Deixe-me ajudá-la a sentir-se um pouco mais confortável. E desculpe pelas amarras, mas já lhas retiro em breve.
(tremor, olhos esbugalhados, cordas vocais mudas)
(pé direito descalço, mão forte e pele suave)
- Presumo que se sinta melhor. Tem um bonito pé, menina Joana. Moreno, musculado, núbil.
(levanta-se e volta a mexer nos utensílios)
- Voltando à jardinagem, a minha ferramenta preferida é a tesoura. Ferro maciço, gume côncavo, pontas bicudas, extremamente afiada e... borracha a proteger a nossa pele.
E o seu pé? Magnífico, perfeito.
(aproxima-se)
(ajoelha-se)
(gritos)
- Hoje é o seu aniversário Joana, acho que lhe devo ofertar algo. Mesmo não a conhecendo bem, quero-lhe dar algo pessoal. Algo muito seu.
(sorriso trocista)
(grita mais alto, agita-se, treme violentamente)
- Acalme-se Joana, vai ver que é pior que ir ao dentista.
- Não não não não não! (grita, berra, estrebucha)
(dedo mindinho aprisionado)
(tesoura de podar aberta)
(tesoura de podar circunda dedo mindinho)
(fio de sangue escorre)
(dor e gritos de dor)
(riso sádico)
(dedo cortado, jorrinho de sangue)
- AAAAAAAAHHHHHHHHHHHHHHH
(ASSOBIO)

Detrás da porta semi-aberta aparece Miguel, Maria, Eduardo sorriam, todos os convidados sorriam, e gritavam parabéns.
- Parabéns!
- Menina, esta é a sua prenda, a prenda que os seus amigos compraram, o seu dedo do pé.

Espero que tenha gostado da surpresa e... Parabéns.

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

A Evocação

Das profundezas mais desprezíveis da humanidade eu vejo-te sair, meu Filho.
Tu és o prometido, o meu sucessor magnânimo.
Da escuridão nascerás e na escuridão reinarás.
Os teus súbditos, ralé humana, ajoelhar-se-ão a teus pés, pedir-te-ão misericórdia. Pedir-te-ão morte ao sofrimento.
Tu, sentenciador-mor da escravidão, facilmente renunciarás, pois no teu reino não há indulgências.
Filho adorado, sangue do meu demoníaco sangue, o teu olhar matará de temor todos aqueles que de ti se aproximarem.
O ódio e o escárnio toldar-te-ão as feições e a sombra será a tua fiel companheira. A tua espada não conhecerá outro temperamento que não o do sadismo, do prazer absoluto da dor.
Os teus escudeiros serão corpos sem alma. A alma que tu lhes sugaste enquanto sorrias ameaçadoramente.
Tu, Messias invertido e perverso, não deixarás que ninguém te traia por dinheiro algum, pois tu serás o cúmulo do mal.
Oh Príncipe Tenebroso, liberta-te do submundo em que te encontras recebendo o sangue de este carneiro velho sacrificado.
Que Belzebu te proteja!

Nasceu.

Uma criança morena e de olhos inteiramente negros emerge do solo florestal de ciprestes. Solta já um sorriso maldoso e mostra dentição pontiaguda de carniceiro.

Um Trovão é o prelúdio da Idade das Trevas

quarta-feira, 20 de junho de 2012

Confissão

Hoje deixo aos meus leitores uma breve história, a estória da minha vida nos últimos dias.

Estranharão se eu disser que me encontro enclausurado. Não enclausurado de uma maneira lírica, senão real. A minha morada nestes últimos dias tem sido a prisão, tenho visto o sol nascer aos quadradinhos. E se me perguntarem porquê, eu sei a resposta, só não sei a causa da resposta.
Certo dia, um fim-de-semana pelo que consigo lembrar, dou por mim com a boca a saber-me a algo férreo. Ainda sentia algum calor, mas não ardor ou dor na boca. Senti o pescoço como que a prender, como se lama tivesse secado nele.
Atarantado corri ao espelho mais próximo (casa-de-banho) e olhei-me.
Reconheci nela a minha cara disfarçada de rubro. Um vermelho vivo na boca, um vermelho seco no pescoço e um vermelho desbotado na T-shirt branca.
Estranhei o sangue. Despi-me. Procurei ferimentos, golpes, pelos de animais no meu corpo. Nada notei.
Mas este cheiro a sangue fresco reforçava-me a adrenalina, como um desporto radical.
Tentando, racionalmente, perceber o que se passava e não em tripar, reolhei o espelho e vejo uma aura no meu olhar que nunca outrora tinha visto. Entre raiva, paixão e excitação notei o brilho dos meus olhos.
De uma forma irracional e nervosa voltei onde me tinha despertado do transe. De um modo coerente analisei o que me murava.
Toda a sala-de-estar estava agora pintada a sangue. Mas mal pintada. Manchas desordenadas e salpicadas. Uma repartição abstracta, como se o Kadinsky estivesse a pintar embriagado.
A alcativa continuava gloriosa no seu negro imparcial, mas a cada pisadela deixava escorrer líquido vermelho.
A minha imagem ao espelho voltou-me à memória. Nauseado pelo cheiro e pela cor dei meia-volta para tentar encontrar a porta de fuga por onde um raio de luz ténue entrava.
Com a meia volta fugaz quase completa tropeço em algo. Olho para baixo e espanto-me com...
Alguém tapou a luz ténue. Rodam a maçaneta. O pânico. O meu pânico! Não sei que fazer, não sei o que fiz!
Tinha a porta ao trinco, deixei-a assim quando voltei do café depois de almoço.
Eles entraram, fardados e de vivaque.
Era a polícia.
Sem perguntas agarraram-me, algemaram-me e eu nada disse. Nada sabia.
Com nojo taparam a boca e desviaram o olhar.
Já eu sentia-me esfomeado. De carne crua e bem fresca. Senti os pelos dos braços eriçarem-se.
Uma força que desconhecia tomou posse de mim. Voltei-me para o polícia nº1, com as mãos atrás das costas, algemadas, e dei-lhe um pontapé que o derrubou. Manietado ataquei-lhe o pescoço com a boca bem aberta.
Infelizmente uma pancada foi sentida no meu flanco esquerdo, quando eu estava a meros centímetros de uma jugular pulante.
Retesei-me em dor, desmaiei e acordei hoje de onde vos escrevo.

Estou preso porque comi o meu irmão.

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Doutra Luz

A luz que me ilumina cega-me. É demasiado forte. Tento manter os olhos abertos por breves instantes mas nem isso consigo almejar. Estou cego. Uma cegueira de claridade, uma explosão luminosa que me tolda a visão.
Sempre imaginei que ser-se cego era viver na escuridão, ou, quanto muito, era viver acreditando em tudo e mais alguma, uma cegueira popular.
Agora, desnorteado e iluminado, percebo que a cegueira também é luz, como se uma lâmpada estivesse sempre dentro da minha órbita ocular.
Sempre me disseram que os cegos desenvolvem num grau superior os sentidos sobejante. No entanto, com o esforço que faço para tentar ver nem que seja uma madeixa do meu amarelo cabelo, calo os meus ouvidos e silencio a minha voz.
Agora, além de cego estou gago e semi-surdo. As mãos, tacteando o vazio (sinto-o), tremem (dá-me a sensação) ao não apanharem nada senão o vazio.
Ao menos resta-me não estar em pânico extremo e as pernas não me tremerem.
Não sinto as pernas a tremer.
Aliás, não sinto as pernas.
Sem ver, sem ouvir, sem falar e sem me mexer. Talvez seja altura de entrar em parafuso.
Não obstante estou calmo e seguro.
Estranho. E estranho Eu.
. . .
Espera! Lembro-me agora. Sou o Sol.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

O abre-cartas

Naquela esquina junta-se o melhor da sociedade. Sem ironias, prostitutas, carteiristas, indigentes proxenetas e agarrados todos juntos.
Clientes aparecem, alguns deles serão roubados por carteiristas com ar de chulos e terão de pedir nas ruas para pagarem o táxi da vergonha, que os conduzirá até casa, cúmplice do adultério.
Na casa deste Cliente o pior da sociedade. Um casal que não se ama, uma criança que do mimo cresce e vítima de esforço conjugal se acha. Um Cliente fixo e uma frígida permanente.
Se na esquina dos tormentos os urros e gargalhadas forçadas dão luz a uns fracos candeeiros, aqui, a luz forte escurece os semblantes carregados e distantes.
Na esquina o Cliente é um cliente, apenas mais um a gastar uns trocos numa fornicação fria e sem nomes. Em casa o Cliente é o inimigo a abater, que não se pode abater porque as regras assim o exigem. Há contas a pagar, um colégio privado a engordar e uma criança a oscular falsamente.
Na esquina todos são iguais, apenas mais uns trastes esquecidos que nem pela polícia são lembrados, a não ser quando o Estado resolve mostrar serviço e servidão.
Na esquina as regras e leis baseiam-se no dinheiro, pancada e fétido álcool. Impera a lei do"deixa ver até onde a corda estica".
No táxi culpado a cabeça sai do escuro e distante orgasmo e entra no modo de próximo afastamento. Ele pensa que nada na vida dele corre bem e apalpa algo no bolso. Sente um abre-cartas que pouco cautelosamente guardou no bolso do blazer de design parisiense.
A vida continuava a parecer-lhe como um corredor de morte, onde a porta de luz ao fundo lhe indica um caminho mortificante.
Retirou lentamente o abre-cartas do bolso. O Cliente tinha agora um pequeno reflexo laranja na lâmina e o punho direito cerrado ao ponto de os nós dos dedos se terem tornado brancos.
Um sorriso maquiavélico e final apareceu-lhe na cara ainda levemente transpirada.
Levantou o braço e cortou a garganta do taxista. Accionou o travão de mão com a mão esquerda

Na esquina continuava a vida porca e decrépita e na casa o silêncio enganador.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Fim de Tarde

Olhei para ti naquele final de tarde, enquanto o Sol descia ávido por descanso.

Tu estavas inerte no solo, o teu peito ondeava calmamente. Eu sentia o sangue a pulsar-me no corpo.

Toda esta paz, todo este silêncio apenas pecado pelo som do vento por entre as árvores e pelo chilrear feliz dos pássaros que esvoaçam perdidamente.

A tua face, rosácea carne, escondia, por debaixo de uma ou outra madeixa de cabelo breu, uma leve impressão de sorriso. Mantinhas os olhos fechados pacificamente e os braços ao longo do tronco. As tuas pernas, meio dobradas, davam-te o ar de criança mimada pelo sono e embalada pela segurança paternal.

Tudo era belo, luminoso, calmo

Olhei para a tua letargia respirando violentamente, com os punhos cerrados e apertados fazendo pálidos os nós dos dedos. Na boca os dentes rangiam-me e nos olhos o vermelho ia ganhando ao branco.

Olhei para ti e pensei “Apetece-me dar-te pontapés na cabeça até ver o teu sangue tingir o chão de escarlate.”