segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Sorrindo à Chuva

Hoje uma frase inspirou-me. Inspirou-me porque me incluo nela e por isso há pessoas que gostam de mim, quanto mais não seja apenas por isto.
Li "Gosto de pessoas que sorriem quando chove".
Eu não sei que género de pessoa sou eu e as minhas semelhantes que sorriem quando sentem água celestial a respingar na cabeça, mas sei definitivamente que não somos aqueles seres encolhidos e negros que se encolhem por debaixo de um guarda-chuva, ou de um casaco disforme em cima de um tronco descabeçado momentaneamente.
Não sei se somos mais ou menos felizes do que esses que fogem de água mole, mas certamente seremos mais senhores dos sentidos e também do Ego. Só egoístas (e tolos) não imitam a maioria e, neste caso, não fogem da água inofensiva e Viva, tal como só os egoístas (e tolos) esperam por Godot ou não se lamentam da chuva que cai, ou do calor que faz, nem sequer do curto salário que recebem.
Se sorrimos com a chuva, haverá razão para lamentarmos a falta de sorte? Não, porque nós, os egoístas e tolos que sorrimos à chuva, estamos mais preocupados em ser felizes e proporcionar felicidade do que cacicar em cantos e recantos de cidade escura.
Nós, os que sorrimos com a chuva e com o vento que entre de rompante pelo vidro detrás do carro e que nos faz fechar os olhos, preocupamo-nos constantemente com o nosso sorriso e com o sorriso do outro.
É por isso que somos gozados, admirados, invejados e ostracizados.
É por isto que sorrimos à chuva, porque sabemos porque estamos a Sorrir na chuva.

sábado, 17 de dezembro de 2011

Ceifar no Vazio

Percorro as ruas nocturnas da minha terra natal.
Gosto sempre de voltar quando ela está vazia, o que não acontece no Natal e em Agosto.
Gosto sempre de voltar quando o ritmo dos meus passos viola abruptamente o silvo mudo da desertificação.
Mas nesta noite fria e deserta não estou sozinho nas ruas empedradas da minha terra. Nas três ruas da minha terra.
Ela perscruta-me por todo e de todo o lado.
Sei-A a espiar-me.
Ao enésimo dobrar de esquina na rua 2 encontro o brilho morto dos seus olhos e a ponta afiada da sua foice.
Vai-me ceifar...

terça-feira, 29 de novembro de 2011

caso bicudo

Tenho a cabeça latejar-me.
Não me recordo bem como, mas dói-me que se farta.
Puxo pela cabeça sem me magoar ainda mais e recordo... recordo que dormi bem e que dormi mais do que clinicamente aconselhado.
O vinho que deveria ter bebido ontem ficou na garrafa e o concerto de hard-rock adiado.
Porque me late a cabeça?
A filmografia densa e pesada que tenho por ver não saiu da caixa e o frio que podia sentir ainda está a uns meses de chegar.
A cabeça late-me.
A gripe que podia ter-me sido contagiada ainda nem às aves chegou e as aves ainda nem chegaram vindas do Sul. A hipotensão perdeu-se nos caminhos de um gordo bife e de um divinal toucinho do céu bebido por entre golos de água.
A cabeça continua a latejar.
Não me recordo de acordar. Aliás, nem sequer me recordo de adormecer.
Mas... mas agora estou acordado. O vento que me afasta as madeixas louras é real, e o cheiro a verde também é real.
O latejar da minha cabeça é real. Apareceu por alguma razão e não desaparece.
A roupa que visto é real, não é um sonhou nem um devaneio.
Mas porque raio me dói a cabeça?
Reparo que o verde que cheiro é o da relva, elevada a tamanho exorbitante.
Estou tombado.
Procuro levantar-me. A custo porém, porque a cabeça é mais pesada que uma cabeça normal.
Olho em redor. Não me lembro de adormecer nem de acordar. Reconheço o sítio. É o meu quintal.
A cabeça ainda lateja. Muito.
Amparando-me a amigáveis móveis e outros apetrechos subo os três degraus que me afastam da cozinha.
O fogão está com os restos do bife por cima e ao lado do lavatório, como sempre.
O frigorífico continua branco e as três cadeiras (que deviam ser quatro, mas continuo sem namorada e com casais amigos) estão ainda de castanho peito feito.
A mesa de quatro bicos está ainda bicada, mas noto alguma coisa num deles.
Uma cor brilhante mas escura transparece pela luz.
Aproximo-me e um cheiro levemente férreo invade-me a dor de cabeça e diminui-a.
É sangue. É sangue do meu sangue. Sangue que não se aguentou e que caiu pela mesa abaixo, esparramou-se pelo chão da cozinha e a passos continuou até ao quintal.
Faço o percurso e vejo que o meu sangue me seguiu.
Dou passos assustados em procura de um espelho.
Encontro-me tropegamente com a casa de banho e olho-me.
Descubro um rombo na minha testa e dele uma nódoa de sangue.
Mas ao invés de o sangue estar seco ou a correr-me face abaixo, o sangue sobe-me lentamente pelo lado esquerdo da cara, a custo, como um ciclista nos alpes, e entra-me ferida a dentro.
Com ele leva também o que encontrou no caminho.
Formigas, lixo, terra, restos e pelos de animais fazem agora parte da minha corrente sanguínea.
Vejo-os endireitarem-se antes de desaparecerem na minha cabeça.
A minha late cada vez menos. Como se a dor fosse causa do sangue perdido.
Será que... Só pode...
Não me lembro de adormecer porque morri... Porque morri e renasci.
Na morte Nada, na vida Sangue.
Da morte bicuda de mesa à vida suja de sangue.
Na morte dor, na vida... lamentos a definhar

terça-feira, 25 de outubro de 2011

caminho às costas

Ele tinha acabado de sair de casa. Entrou no seu carro, no seu caquético carro e seguiu caminho velozmente.
Fora arrancado do seu Domingo caseiro por uma chamada telefónica. Zé, seu amigo, ligara-lhe a dizer que havia confusão na tasca com o seu pai, já trôpego de álcool.
Já não era a primeira vez que acontecia.
O caminho fugia aos soluços por debaixo do carro. O caminho era feito de cor. Curva à direita, curva à esquerda, recta de 4 quilómetros e chegava-se à Taberna da Guiomar.
Quando o carro parou, branco de coloração, um rapagão saiu lá de dentro. Já se habituara a ver aquele triste espectáculo.
Uns copos partidos à entrada da Taberna, o cortinado esparramado no chão e o seu pai sentado e ataviado numa cadeira de pau.
As faces do Sr André eram rosáceas de derrames, o cabelo escasso e desalinhado. As pernas, fracas e agora dobradas continuavam a tremer. Notava-se o cheiro acre de urina e o colete de renda era um misto de branco e tinto. A camisa jazia na mesa, enrolada em si própia como que amedontrada.
O silêncio da Taberna era violentado pelo ulular ébrio do Sr André.
Eduardo tocou ao de leve na bóina, os olhos agradeceram e as mãos levantaram habitualmente o pai.
Os seus ombros, calejados e robustos agarravam o débil pai.
Enfiou-o no velho carro como pode, ajeitou-lhe o cinto de segurança e endireitou-lhe a cabeça. O Sr André injuriava por injuriar, ofendia vivos e mortos mas não o vinho.
O caminho feito de cor agora ao contrário foi fácil de fazer. o velho adormeceu.
Ao chegar ao destino a cena repetiu-se. Filho ampara Pai, fria e meticulosamente. Deita-o na cama, descaça-lhe as botas e põe-lhe um penico à beira não vá o vinho jorrar azedo e às recuas.
O sono chega de imediato ao Sr André, e ao Eduardo chega depois de arranjar a roupa de trabalho do pai, de aconchegar as botas ribatejanas, de preparar o almoço ed o conduto...
Adormece à luz da vela, cabeça apoiada no punho fechado e telefonia ligada nos fados.
Amanhã é dia de Fado, do mesmo Fado

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Mãos à Obra

Ando ausente do mundo, como uma sombra em noite de Lua nova.
Ao meu redor apenas o breu, e de mim apenas escuridão. Os dias para mim são de trovoada, pesados e barulhentos, tristes e com o céu a desfazer-se em pedaços por aqui e ali.
A chuva que me inunda o caminho não me molha, mas disfarça as minhas lágrimas.
Fiz da tristeza o meu ecossistema. Negra é agora a cor dos meus dois lados.
Como cheguei a este ponto pergunto-me eu e já quase me esqueço da razão, que na verdade não tem razão de ser.

Um dia, há muito tempo, ou há pouco, já não o sei, porque o calendário deixou de o ser em mim, uma criança passou por mim a chorar.
Por ela estanquei o meu passo e segurei-a forçosamente pelo braço.
A sua rota roupa e a sua suja cara, cicatrizada de lágrimas recentes a escorrer pela sujidade da sua pele fizeram-me pena.
Recordo-me agora que lhe perguntei porque estava tão suja e pela mãe.
Ela não respondeu com palavras, limitou-se a agarrar o meu pescoço com tanta força quanto podia.
Ainda mal sentia o abraço da criança e já sentia uma forte pancada na nuca. Contorci-me em dores e vi a cara do meu agressor. Uma senhora de jovem idade, olhos encovados, cabelos negros oleosos e em desalinho. Um joelho esfolado e uma expressão resumiam aquela pessoa qua ainda mantinha a arma no punho fachado. Um maço de alvenaria.
Revi o maço bem de perto, perto demais e adormeci de um baque.
Quando abri de novo os olhos o chão brutalizava-me as costas, enquanto na cabeça me latejava a dor.
Tentei içar o peso do meu corpo pelos membros e a custo consegui.
Quando, de pernas trémulas tentei entender o "onde" o "quando" e "porquê" vi que ao meu lado esteve deitada a tal criança de sexo indefinido.
O chão que para mim fora doloroso era para ela escarlate. Quis restituir o abraço, e quanto mais me aproximava mais sentia o frio e o cheiro férreo a sangue.
A seu lado, vil arma, o maço. Toquei-lhe. Estava fria de morte... DE MORTE.
A criança estava morta, suja e rota.
O seu pequeno e infeliz crânio aberto de lado. O sangue na têmpora era acastanhado e seco. As palmas das mãos, amareladas, estavam viradas para o céu, e um sorriso bailava ainda no seu rosto.
Parecia feliz aquele morto, aquela criança ali morta, violentamente morta.
Voltei a levantar-me, apoiando-me no joelho.
Não me preocupei, afinal de contas aquela criança não era minha. Deixei-a morta na estrada, com o seu sorriso mortificante e mortificado.
Agarrei no maço e guardei-o na manga do casaco.
Assim que dei um passo a chuva lavou a criança, o chão e molhou-me o tutano.
Amaldiçoei o abraço. Não fosse ele eu estava seco em frente a um balcão de um qualquer bar a beber um whisky de malte (o meu preferido) e a ver a bola.
Aquele maço era agora a minha vingança.
Desde esse dia escondido na manga do meu casaco.
Amaldiçoei-me por causa da minha compaixão. A minha própria maldição trouxe-me o Inverno só para mim.

Hoje, a sós com a chuva indiferente para mim encontro o fim da maldição.
À minha frente a figura com as pernas escalavradas e com o olhar tão negro quanto o seu cabelo. Parada, de pernas abertas, a chuva caía-lhe lentamente pelo vestido negro em forma de gotas.
Agarrei fortemente o cabo da vil arma. Passo a lente passo aproximei-me dela. Ela nem um movimento.
Levantei o maço a meia altura e chamei-lhe Morte. Pedi, misericordiamente, que guardasse enfim a sua arma.
Ela, em movimentos estudados durante eternidades, levantou a sua magra e pesada mão e aceitou-a de volta.
O Sol (ou seria a Lua?) tornou a aparecer-me diante.
O baque que outrora dolorosamente me adormeceu agora voltou.
O maço acabou o seu trabalho e matou-me ali mesmo.
O sorriso apoderou-se de mim, morto, e o brilho dos meus olhos voltou por instantes.

A minha maldição acabou e eu posso descansar, em fim e em paz.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Um dia tudo muda

Disseste-me: "Um dia tudo muda" e eu disse "Isso é difícil, o tempo é curto".
Mas tu sabias do que falavas. E eu não acreditei ou não quis crer.
Nesse dia um turbilhão de nada aconteceu.
Enquanto esperava por ti nada tinha que fazer.
Despreocupado porque a hora estava marcada sentei-me algures no parapeito do rio e olhei o vazio.
Tinha um livro na mala e um bolo no bolso. Mas nem fome de letras nem vontade de comer me apareceu. Continuei inerte e sereno no vazio da água brilhante ao reflexo da luz fugidia por entre nuvens passageiras.
Olhei para o relógio sem perguntar as horas. Li decor as horas e estava quase.
Despreocupado continuei. Tu irias estacionar o carro perto e ligar-me a dizer o teu paradeiro. Eu caminha até ti algo nervoso, como sempre e desde sempre e tu fazias que não me vias pelo canto do olho. À distância medida pelo vidro tu irias levantar a cabeça e sorrir apenas porque sim.
A hora chegou e tu não telefonaste. Durante 3 minutos pensei que era o trânsito.
Passado os 3 minutos liguei-te e não atendeste.
Preocupei-me por ti e por mim.
Corri e acorri aos locais do costume e tu não estavas.
O sangue que tinha na cara começou a esfriar e o suor começou a suar.
Voltei ao meu poiso, agora em brasas. O calor que me transmitia era tal que não me sentava sossegado.
Impaciente senti umas mãos quentes e calmas no meu pescoço e uma risada infantil.
Eras tu que pela primeira vez me encontraste e não esperaste que eu fosse ao teu encontro.
Hoje, ao contrário do beijo quente sentaste-te a meu lado ainda mais ardente.
O calor do assento tornou-se tépido e o meu braço direito quis sentir o novo calor, o teu calor.

Olhei-te, o sorriso medido do vidro soergueu-se sem muralhas e tiraste o meu braço do teu ombro. Fizeste-o descansar na pedra fria do parapeito sobre o rio e descansaste a tua mão sobre o mindinho dela.

Um dia tudo muda, e hoje foi o dia.

Hoje tudo ficou na mesma mas tudo mudou.
Os teus olhos assim mo disseram, sem palavras. Apenas o brilhar de estrelas no brilhozinho dos olhos.
Afinal de contas... A nossa vida é feita de pequenos nadas. . .´

"Tudo é relativo, salvo o infinito." - Duque de Lévis

http://www.youtube.com/watch?v=qq9gKIqBO_E

sábado, 6 de agosto de 2011

Jesus Antunes

Vou-vos contar a minha história.
Na verdade não é a minha história, é antes um pedaço da minha história.
Na realidade são apenas pedaços despegados da minha vivência.
Eu nasci um dia antes do dia marcado. Nasci marcado de homem que viria a ser.
A partir desse mesmo dia fui perseguido.
Perseguido por ditadores com medo de perderem o poder e com eles algo que eles tomaram deles, como nós tomamos por nosso a roupa que trazemos ou o corte de cabelo que nos fazem.
Os meus pais esconderam-me por entre lendas e ovelhas.
Gente rica, mas gentia, acorreu até mim. Depositavam as suas esperanças e riquezas em mim. Depois deles gente pobre me queria ver e adorar. Despojaram-se das suas pobrezas por mim, sem que eu alguma vez lhe tivesse pedido algo.
Durante largos anos da minha vida nada mais se soube. Nem o onde, nem o com quem, nem o quê. Eu digo-vos: também eu não sei, porque de tanto ouvir e ver a minha história eu já nem sei quem fui ou quem sou.
Aos 30 anos (diz-se, mas o dizer anda pelas ruas, já dizia o meu avô David), recomeçaram-me a escrever.
Como destino que me foi traçado pelo meu Pai e não pelo meu pai, continuei a ser persguido quase tanto como ouvido e adorado.
A medo fui-me treinando com os ditadores que outrora me perseguiram e soube aprender a falar às gentes.
Falei em feiras, em santuários, em montes (brilhantemente, deixem que vos diga, e com honestidade). Mandei levantar paralíticos e mortos renascer.
Quando os senhores me acharam muito mais que uma pedra no sapato, fui acusado de algo que nem sei bem o quê e traído (ou salvo? ou amado?) por um dos meus cavaleiros da távola redonda, um dos meus doze deuses do Olimpo, uma das minhas doze deídades do Antigo Egipto.
Três dias estava morto na cruz. "O Redentor, o Messias", diziam eles a meus pés, "está morto".
Antes da minha hora berrei, como um bezerro que não descobre a mãe entre as outras vacas: "Pai, porque me abandonas?" .O meu sacrifício deu-se então(sim, um sacrifício mortal, morri sacrificado, e as gentes aceitam isso enquanto eu o lutei. Fui apenas mais um cordeiro, no fundo e desde o início).
Hoje, passadas duas noites e cerca de dois mil anos da minha morte eu sei a razão do teu abandono Pai: o meu sacrifício não foi suficiente, e tu, cobarde, na tua omnipotência e grandiosidade sabia-lo e abandonaste-me.
Eu, cordeiro de deus, morri ingloriamente. Eu, O cordeiro de deus, morri em vão.

A minha história é essa.
Hoje, depois da ressurreição, sou o Antunes da repartição das finanças de Degolados, e salvo o país da bancarrota. Vão esforço o do Messias.

"Seja no que for, apenas poderemos ser julgados pelos nossos pares." - Balzac

http://www.youtube.com/watch?v=B6g7SWqbPzk&feature=related

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Rei Sadim

A minha mãe disse-me ao dia de vida que eu tinha um dom. Não que eu me recorde de tal ditame, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
A minha mãe morreu 3 dias após o meu parto.
A minha mãe tinha razão. Também ela tinha o seu dom. O seu dom era o da adivinhação. Não que eu o recorde, porque o meu dom não é o da memória, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
Hoje, de cada vez que oiço isto, mando cortar-lhe logo a língua.
A minha mãe morreu porque sabia o meu dom. Tinha-o adivinhado. E eu perdoo-a por tal, também eu mal me suporto.
O meu dom é a pestilência, o azedume, a podridão, todos num só. E por estes, a fome e mudez de muita gente.
Eu nasci ao contrário, com os pés virados para a lua e a cabeça para o ventre.
enquanto crescia, de luvas na mão, corria de costas e ainda hoje ando ao revés.
As palavras escrevo-as da esquerda para a direita, enquanto a minha arabidade me obriga ao inverso.
O meu nome foi escolhido às cegas disso.
Desde o primeiro dia em que falei e disse "Rei", que tudo o que toco se estraga ou morre.
Disse Rei e abracei o meu pai. Não que eu me recorde de tal ditame, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
Repeti "Rei" e acrescentei balbuciando "Midas", e o meu abraço fez o meu pai frio e roxo. Os olhos tornaram-se cristal negro.
Gritou-se "rei morto, Rei posto", Não que eu me recorde de tal ditame, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
Eu fui assim rei. eu sou assim rei. o Rei Sadim, aquele que mata o vivo em que toca e que estraga a comida em que toca.
É este o meu dom, tornar o mundo um local enjoado e enojado.
É este o meu dom, não sentir o toque da minha rainha.
É este o meu dom, não sentir o pelo dos meus cães.
É este o meu dom, não sentir com as mãos, e ser cego mesmo vendo.
É este o meu fado, um mouro encantado, que pouco tem de encanto.
É este o meu fado, ser Midas ao contrário

"Nem tudo o que reluz é ouro"

http://www.youtube.com/watch?v=AhxVx8fskMo

sábado, 9 de julho de 2011

Ela não ri(a)

Dois pés, defendidos por sandálias rosa, desciam calmamente a rua. Suportavam o peso leve de um corpo bamboleante e belo.
O cabelo em tons de escarlate era como um pêndulo ao passo de cada passo.
O seu vestido florido, fresco dava a ideia de um ameno amanhecer, aos sons da Natureza. O braços longilíneos ao tronco e aos passos suavizavam a sua passagem.
"Ora ali vai uma bela mulher", diziam em volta vozes masculinas e femininas. Eles desejavam-na, elas desejavam ser ela.
Ela, despreocupadamente, fazia que não entendia a origem desse desejo.
Os outros não sabiam o fardo que ela carregava: o de não sorrir.

Ela não sorria, mesmo quando encontrava algo ou alguém com piada. Ela escondia esse facto do mundo, daquele que outrora foi o seu mundo.
Antes ela teve amigos, que não soube manter. Antes ela teve namorado, que não acreditou ter.
Ela escondia a ausência de sorriso com lamentos e amuos.
Aos falsos sentimentos expressados dissimulava-os com aparência.
Por esconder o não sorriso começou a obcecar-se com o corpo, com o ginásio. Queria parecer de bem com a vida a si mesma. A crença na compreensão perdeu-a quando ao se defender os perdia.
A sua sala, sempre cheia de solitude, era um ginásio improvisado.
O dinheiro que ganhava no call-center desperdiçava em veleidades vaidosas. Hoje uns sapatos caros, amanhã um vestido ainda mais caro, ontem um fato provocante.
Quase toda ela era elegência, porém o infeliz segredo escondido por detrás de negras e falsas emoções cauterizaram-lhe a personalidade.
Porém, nem sempre fora assim. Houve um tempo longíquo onde o riso aparecera e fertilizava em sua volta.
Esses dias cessaram algum dia. Num dia em que as lágrimas lhe jorraram pelos olhos, e cairam pelas faces, queixo, algumas descendo o pescoço até ao peito.
Esse dia foi o da separação. A separação da sua irmã siamesa.
Ao ser-lhe arrancado meio-ser também lhe arrancaram o riso, sem porém lhe terem arrancado a felicidade. Apenas deixou de a saber expressar.
Quando pela primeira vez não riu chorou, chorou durante três dias e quatro noites até se ter esquecido do que lhe caíra no goto.
Quando esqueceu percebeu que a alegria e a felicidade lhe iriam passar ao lado, lhe teriam que passar ao lado.
Decidiu deixar de ser feliz. A felicidade não partilhada era assim acessória.
Hoje, ao descer a rua, tinha isso como certo.
Hoje, enquanto descia a rua, parou. Parou à escuta do que diziam em sussurro e ouviu.
Hoje ouviu com orgulho e não com indiferença.
Voltou a sentir o desejo secreto de sorriso, e tentou soltar o sorriso, mas não conseguiu, mas pouco se importou. Estava efectivamente contente com o desejo caprichosos dos homens e com o desdém das mulheres.
Decidiu-se.
Chegou a casa.
Chamou pela irmã decepada.
Decepou-lhe um dedo, lambeu um pouco do sangue derramado pela tábua de cozinha e sorriu, e riu, e riu por todos os dias em que não riu.

"Quem teme o sofrimento sofre já aquilo que teme." - Michel de Montaigne

http://www.youtube.com/watch?v=WQ0NBKqQ4ys

sexta-feira, 17 de junho de 2011

por ti

Olhei na poça de água e vi no seu reflexo uma figura pálida e de rosto encovado. Era eu. Eu sabia, sabia porque de cada vez que lavava a cara, de cada vez que fazia diariamente a barba, ou lavava os dentes, ou ajeitava o nó da gravata, lá estava ela, aquela figura e não outra. E não podia ser mais ninguém que não eu, eu, solitário.
A cada passo que dava sentia o frio entrar-me pelo cano das calças de linho amarrotado.
Era fim de Outubro. Os dias ainda iam quentes, mas os entardeceres arrefeciam. Ficava a pensar sobre as noites frias do deserto do Sahara, e pensar como lá poderia eu viver. O mesmo clima e a mesma solidão deste final de Outubro.
Os candeeiros laranjas-foscos já iluminavam o meu caminho e encovavam ainda mais o meu rosto.
Eu ia de encontro a ti.
As pedras das calçadas sabia-as de cor, as esquinas foram tanta vez dobradas por mim, que se se mexessem um milésimo de milímetro de cada vez que eu passasse, não eram mais que uma fima parede de papel.
A tua casa era ali, já ali. Ali e abandonada, decadente e arruinada.
O teu cabelo era o cabelo da Rapunzel, mas verde. Eu via o teu cabelo pendente da varanda breve.
Era verde como uma hera.
Ao velo os meus dentes ralos e transparentes mostravam-se. Os lábios agora sorridentes enchiam-me as maçãs dos rosto e os olhos brilhavam como que defronte de um candeeiro a óleo.
O teu cabelo era de facto uma planta que invadira a casa e caía agora pela varanda.
Eu sabia-o, eu não era tolo, mas esta imaginária era tudo o que me restava de lembrança de gentes.
Eu era o último dos homens vivos, e apenas dos teus cabelos vivia e ganhava cor.
Adormecia ali, até que a lembrança do espelho me acordava do meu torpor

sábado, 11 de junho de 2011

felicidade colossal

Ela queria ver o pôr do sol de alguma protuberância.
A tarde tinha estado perfeita. Um calorzinho entrecortado por entre nortadas frescas. As nuvens no céu estavam alinhadas ao desalinho, numerosas, mas não o suficiente para nublar o dia. O sol, lá se mantinha, para todos, castíssimo.
Ela hoje foi ver o por do sol.
Chegou ao Alto do Cabeço e procurou o melhor assento para se sentar. Uma pedra pareceu-lhe perfeita. Ficou ali sentada, queda.
O vento fazia-lhe dançar o cabelo negro. Os olhos verdes jade estavam constantemente a ser invadido pelo negro do cabelo. A pele morena estava coberta de um casaco de linha, fino, mas não o suficiente para não aquecer.
O sol tornara-se laranja e tornara o alto alaranjado. Os olhos verdes pareciam ainda mais brilhantes com a luz a incidir directamente sobre eles.
Ela está a ver o por do sol.
O risco facial que os lábios lhe davam era agora uma elipse com as pontas viradas para cima. Um sorriso sincero, terno, raro.
A vida era simples, e por vezes, a felicidade ainda mais simples.
Ali estava ela, quase de cócoras, as mãos cruzadas à frente dos joelhos, as costas arqueadas, um sorriso na cara e o cabelo ao vento.
O sol era agora o seu epílogo. O laranja tornava-se cada vez mais em carmesim, colorindo a natureza em volta dela. As sombras agigantavam-se e tudo se tornava num mundo de colossos.
Ela hoje viu o por do sol.
A luz do dia ainda persistia, mas o sol já tinha desaparecido ao largo.
Ela levantou-se e o seu sorriso abriu-se mais um pouco. Levantou-se de um pulo e reparou que estava um papel pequeno debaixo de uma pedra. Nele a inscrição: eu vi-te. amanhã, mesmo lugar, mesma hora?
Ela pegou o papel, guardou no bolso detrás das calças e deu ainda mais vento ao cabelo no feliz caminho até casa.


"A felicidade não é fruto da paz, é a própria paz." - Émile-Auguste Chartrier

http://www.youtube.com/watch?v=vjncyiuwwXQ&feature=share

quinta-feira, 26 de maio de 2011

Gozo

- Ena pá, “ganda” sol!
Estava um diz soberbo, brilhante, ameno, muito bom para passeios, e era isso mesmo que Artur fazia. Ia deambulando por entre as árvores do jardim, verdes com a relva fresca e macia que cobria o chão por debaixo dos seus pés
Muita gente passeava. Todos estavam felizes da vida, gozavam aquele dia magnífico de Primavera de um céu azul esplendoroso.
Os velhos brincavam com os netos e com os filhos que tinham saído da prisão do escritório para gozar o bom da vida. Ali estavam todas as gerações da família a socializar, a falar, a gozar.
Mais à frente um bando de jovens, todos maltrapilhos, sujos e com má cara, seguravam, à margem deste invólucro, um pequeno cachorro carinhosamente e ajudavam sempre aquele que aparecesse a seu lado com um pequeno problema.
Ao lado namorados namoravam. Trocavam juras de amor e diziam-se coisas tontas que só o amor permite.
Havia em todo o seu redor um burburinho saudável, os pardais cantavam, as pessoas andavam a pé ou de bicicleta, cochichando vida alheia. Os bebés riam e as mães trocavam palavras. Não existiam agentes da autoridade porque tudo era ordem.
Mas eis que se ouvem vidros a serem estilhaçados e uma sirene.
Artur olhou em redor e aquele magnífico dia foi-se tornando mais escuro e cada vez mais parecido com um quarto de um lar de idosos e os sons lá fora mais pareciam os de um assalto prosseguido das sereias dos carros policiais.
Artur, do alto dos 80 anos cheios de experiência, notou: Acordei de novo… puta de vida!

"De noite os defeitos se ocultam." - Ovídio

http://www.youtube.com/watch?v=wl0XLHy7kes&feature=BFa&list=PL7F0CF39298D0F91A&index=11

segunda-feira, 23 de maio de 2011

a noite encontro-me

A noite caiu magoando-me. A sua negra estrela atinge-me como um raio e derrota-me.
O último raio de Sol que aparecia relembrou-me o cisne e o seu canto. As trevas da noite são o meu fim, a minha inexistência diária.
A minha vida ganho-a diurnamente, dando sorrisos e rebuçados a quem dentro da caixa. O silêncio vinga-me a fome, mas a noite silenciosa vinga-me o silêncio.
Eu vivo das pessoas, vivo do burburinho, vivo dos risos e dos olhares que não vejo nas minhas costas.
A minha roupa muda todos os dias, renovo-me a cada dia que amanhece, como se fosse um tira-olhos em cada dia que passa sobre o meu pedestal.
A noite traz de volta a minha condição.
O dia, glorioso, luminoso, mesmo com chuva, alimenta-me, enaltece a minha fisionomia, o meu ar, ora encovado ora bonacheirão. O dia realça a minha maquilhagem, o meu ser renovado e reformado. O dia mostra as minhas capacidades, a minha argúcia, o meu talento, o meu engenho, até que o nefasto pôr-do-sol apaga o que durante o dia construi.
Deixo de ser quem até ali fui. Deixam os outros de me ver como eu era. Deixo de saber como estou. A noite destrói o meu trabalho, a minha arte, o meu-ganha pão. A noite é a minha morte quotidiana.
Aninha-me no peito a réstea de esperança do amanhã, porque sei que o amanhã terá o seu dia e o seu sol, a sua luz e as suas sombras, porque sei que amanhã me pintarei, me vestirei para ser o que sei fazer, que é encarnar em alguém grande, imortal. EU SOU IMORTAL com e no dia, nada me apagará, a não ser a noite.
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite mostra-me o que eu esqueço.
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite ilumina-me a razão.
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite recorda-me que eu... que eu...
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite sou eu
À noite, na noite recordo-me que eu nunca sou eu, que eu sou apenas uma pessoa que se pára e os outros admiram.
À noite, na notie choro porque eu sou um homem-estátua, e toda a minha vida é a vida daqueles que represento.
À noite, na noite sei que o homem-estátua que sou vive sozinho todo o dia, que os sorrisos que me alimentam sorriem para o Júlio César ou para o Lincoln.
À noite, na noite mortifico-me e espero pelo dia que aí vem.
Sou uma estátua de mim, à noite, na noite

"A escravidão é o estado natural do género humano, até que se realiza a libertação." - Xavier Maistre

http://www.youtube.com/watch?v=QWs8DaWbK8w

sábado, 7 de maio de 2011

hoje é o dia!

Hoje disseram-me "Levanta-te, acorda, limpa-me essas ramelas da cara e faz-te homem!"
Hoje fiz o que me mandaram, até certo ponto. Não me tornei homem, tornei-me antes quem sou. Se me fizesse homem seria mais um, seria igual a tantos outros que por aí andam, aos caídos, semelhante ao seu semelhante por assim o quererem ser.
Hoje levantei-me depois de me ter acordado, antes de a ordem me ter sido dada.
As ramelas limpei-as com Sol e tomei um banho canto de pássaros. Em vez de me fazer homem sorri infantilmente, ou pelo menos gosto de pensar que sim.
Hoje, depois de me ter levantado e ter limpo, sujei as mãos na lama e rasguei as calças no silvado.
Hoje, depois de me ter sujado e rasgado, fui quem sou.
Ao meu passo ululante os da minha geração censuravam-me com o olhar e com a mente toldada por rugas de homem crescido que lhe ordenaram um dia ser e eles anuiram ser.
Hoje, enquanto dava os meus pulinhos reparei numa saia aos folhos e nuns ténis de pano. Fiz-me parado ali. Alcovitei a saia e os ténis. Uma blusa azul, simples e uns óculos de massa apareciam por cima de uma pele morena e esfolada nos cotovelos. Nas mãos sujas um ramo de flores silvestres arrancadas por força à Terra Mãe.
As rugas em volta dos seus olhos denunciavam que nascera há já bastante luas. Provavelmente tantas como eu terei visto nascer.
Hoje ao ver os ténis de pano mudei o rumo dos pulos e comecei a dar passos seguros na sua direcção. Ela sentiu-me, virou-se e sorriu-me infantilmente, ou pelo menos eu assim o senti.
Hoje ao retribuir o sorriso recebi as flores silvestres e retribui com amoras pingando cor-de-sangue doce e fresco.
Hoje sou quem sou e gosto. Hoje é quem é e gosta. Hoje somos quem somos e gostamos.
Os outros? os outros são homens e mulheres iguais a tantos outros...

http://www.youtube.com/watch?v=xSd4evT8Nw8

"Sufoca-se o espírito da criança com conhecimentos inúteis." - Voltaire

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Luz Suspiro

O suor corre-me nas veias e transpiro sangue. O passo parado que tomo deixa-me exausto. Expiro a cada segundo que passa, com a salinidade por dentro e o sangue por fora.
A minha tez não a vejo, é substutuída por um tom vermelho vivo, vivo como eu o deixarei de ser em breve.
A horrificiência sinto-a. Os pulsos limpam-me a testa, a saliva torna rosa a minha transpiração absurda.
Sinto a respiração pesada, ofegante, rara. Escasseia-me a capacidade pulmonar, que por ora oxida água salgada. A grande circulação anda a tensões lentas para me desvanecer. As pálpebras sanguíneas pesam-me enquanto ando estaticamente. Sinto-me vacilante a cada passo que dou sentado no banco.
Não sei como aqui parei, neste banco solitário no meio do deserto pérfido, de tons terra seca e inféril. A única vida que presencio é a minha a extinguir-se. O céu é azul e apenas azul. Sei que assim é apesar de o ver rasgado de vermelho desfocado que me tapa a visão física.
É agora... a última golfada de ar aproxima-se da boca através da traqueia salgada. Dói-me o peito, não sinto palpitação.
Abro a boca involutariamente, maquinalmente. Está aqui o Fim, a centelhas de segundo. O último suspiro, o último pulsar.
Da boca morro. O sopro que me resta é um fio de luz branco, puro, casto.
Mas... como o sei se morri?
O que me sai pela boca não é respiração, sou eu! Vejo o meu berço, vejo a minha roca, a minha bicicleta, a minha mochila, a minha namorada, a minha mulher, o meu filho, e enfim, vejo todos os meus pensamentos a correrem, todos tão presentes como se tivessem sido acabados de pensar.
Percebo que tudo aquilo que pensei é quem sou e não a pessoa que fiz de mim.

Percebo que estou na luz que me sai da boca. Abro os olhos. Vejo o sangue na cara ainda, mas não dói a respirar. Sinto o peito mais forte que nunca. Unhas frágeis apertam-se na palma da minha mão. Luzes fortes e brancas, respirações fortes e palavras entredentes ferem-me os ouvidos e choro.
Choro alto para afogar todos os sons em volta.
Vejo cortarem-me um bocado de mim...

Uma segunda oportunidade.

http://www.youtube.com/watch?v=LuqEbRzy_t8


"da luz apenas fogem os escaravelhos, os ladrões e os ignorantes" - Paolo Mantegazza

quarta-feira, 13 de abril de 2011

caminhos de Roma

Hoje acordei rameloso e sorridente. O Sol não se via ainda, mas a sua alvez já se fazia notar.
Levantei-me com algum custo. O torpor de uma noite curta invadia-me e ocupava-me. O teu cheiro que se exalava da cama quente do teu corpo embebedava-me a razão.
Consegui então levantar-me e tu deste um leve suspiro, um rorronar felino, como que a chamar por mim, mas eu não anui.
Na casa de banho tirava as ramelas mas não consegui lavar o sorriso, ficou-me colado à cara como uma lapa. Não me esforcei mais, se era assim que a minha cara se queria mostrar, era assim que eu me apresentaria nesse dia!
Vesti-me a correr, voltei à cama quente e perfumada por ti. O meu espaço já estava ocupado. Ocupado pela tua cabeça e pelo teu braço direito. Os teus cinco sentidos em cima das minhas últimas migalhas.
Vou-te beijar, pensei. Não o fiz. Vou-te fazer uma festinha. Não o fiz. Vou sorrir, pensei. Não o fiz. O sorriso já estava em mim, já era teu.
Mandreei e apenas mantive o sorriso. Por vezes, quanto mais simples melhor.

Saí de casa. Ao abrir a porta ouvi as molas da cama. Eras tu a mexeres-te. Tentei sorrir, mas ele já lá estava. Fechei-te a porta mansamente e saí acompanhado. Acompanhado pelo sorriso e por ti, na minha cabeça, na minha pele, na palma da minha mão.

Tinha-me esquecido do carro aberto. E então? Ninguém rouba carros abertos. Entrei, pus o carro a trabalhar. Fui embora. Segui caminho à direita quando deveria ter seguido à esquerda. Troquei as voltas na primeira saída da estrada e estacionei onde não podia.
Cheguei ao destino que me estava destinado.
Ao sair do carro soube-o. Tu continuavas na cama a meu lado e eu a sorrir para ti

"Enquanto o poço não seca, não sabemos dar valor à água." - Thomas Fuller

http://www.youtube.com/watch?v=9cQloro92xA

domingo, 3 de abril de 2011

A grande mentira

Havia um boliço na terra.
As mãos agitavam-se ansiosas, como se não se quisessem largar mutuamente, por medo ou por amor. Os olhos olhavam em redor a procurando algo que a memória se poderia ter esquecido, um relógio de bolso, um lenço, um alfinete, mas na verdade nada faltava.
Os homens vestiam os seus melhores fatos, já coçados nos cotovelos. As mulheres compunham-se com as melhores combinações e o brio do ouro em volta do pescoço e dos dedos.
As senhoras de lenços rendados na cabeça iam espreitando ao postigo. Os homens com os seus chapéus panamá debruados a negro iam-se agrupando às esquinas. Todos olhavam para o relógio, apesar de todos saberem que a hora estava marcada e que o sino na torre da igreja os chamaria.
Dentro da igreja lá estava ele, primorosa e pobremente vestido. Camisa branca, lívida, sobre um casaco preto, com um laço antigo a compor. As calças da cor do casaco e os sapatos da cor da gravata. Seria ele o mais afastado da porta da igreja, não fosse o padre, que a encimava do seu pedestal. Vestes brancas e estola e casula púrpura compunham o seu paramento.
A igreja ia-se enchendo vagarosamente, mesmo antes do sino ter chamado. As mulheres enxugavam as lágrimas de emoção a um lenço rendado com o lenço da cabeça.
O burburinho intensificava-se e os homens que já apareciam prostravam-se à porta a louvá-lo, àquele que agora estava ali de junto do padre.
O sino tocou.
Já toda a gente sabia o que aí vinha, mas ninguém queria, ninguém podia faltar ao chamamento.

Tinha começado o funeral.


"A vida já é curta, mas nós tornamo-la ainda mais curta, desperdiçando tempo." - Victor Hugo


quinta-feira, 24 de março de 2011

S... de oliveira

Encostado estava ele, Pedro. Oliveira era o seu encosto. Uma oliveira velhinha, dobrada sobre o peso do tempo que passou ao sol, à chuva, ao frio e ao calor. Poucos se encostavam a ela, mas muitos a vararam em tempos, quando ela era nova, vigorosa, fértil.
Era assim que Pedro imaginava o seu encosto. Amava-a como quem ama o seu corpo. A oliveira era parte de si. As suas costas tinham cada casca prestes a soltar-se marcada.
Eles eram uma só pessoa, uma só vida, feitas de muitas vidas passadas.
Agora, Pedro, perto dos 30 anos, barba aparada e franja rodada ao vento, a barriga a salientar-se por debaixo de uma formosa camisola, tocava ao de leve a oliveira, parte do seu ser, e sorria. Virou-se para a ver enquanto a sentia, e recordou cada uma dos momentos passados até aí. Poderia ter chorado, mas em vez disso sorriu, porque sabia que esta era a altura.
Soergueu-se e com o sol a brilhar-lhe os olhos e a aragem a abanar os ramos soprou um estridente assobio. A este som a porta do seu carro parado à distância obedeceu, e abriu-se.
Saiu de lá uma figura uma figura feminina. Pedro voltou costas ao vulto que se aproximava e sussurrou a um buraco oco e escuro da oliveira: "É ela, é ela a S..."

"só se pode vencer a natureza obedecendo-lhe" - Francis Bacon

http://www.youtube.com/watch?v=yQoOohOsyyE

terça-feira, 22 de março de 2011

pequeno almoço

Hoje acordei dorido. As rugas vermelhas e falsas do meu corpo encontram espelho nas rugas do sofá. Uma réstea de sol nascente invade-me a casa.
Hoje acordei no sofá dorido. A cada movimento meu o sofá reclama, chia, como se se contorcesse para escapar à dor, à dor dele que é a minha.
Hoje acordei dorido no sofá que chia. A chiadeira propaga-se pela casa. Os meus ossos estalam à medida que me afasto do sofá. Dói-me o corpo e a porta da casa de banho chia dolorosamente. Faz-me zunir os ouvidos, que neste estado chegam perto da torneira que zune à passagem da água.
Hoje acordei dorido no sofá dorido que chia. A água chega-me fria à pele, que se arrepia enquanto me transforma numa laranja descolorada e vincada. Os vincos que teimam em não desaparecer, como uma tatuagem a tinta de curta duração, para me lembrar da dor com que acordei.
Hoje acordei enrugado no sofé dorido que chia. A laranja em descolorada, vincada e agora molhada em que me tornei começa a apodrecer. E em menos de nada a minha pele e o meu sumo ácido começam a espalhar-se pelo chão. Vejo o meu único cabelo verde e grosso escorregar-me pela casca que sou. O cheiro a fruta podre impregna-me a casa de banho, eu sei-o.
Hoje acordei a chiar nas dores do sofá. No sítio onde tinha o olho esquerdo saem-me caroços e pedaços de cascarrão. Sinto o sofá a chiar, a porta a chiar, a torneira a zunir.
Hoje desfiz-me sem dor no chão da casa de banho. Levanto-me apressadamente do sofá onde adormeci a ver um filme e tenho uma vontade doentia de um sumo de laranja à janela.


"Um sonhador é aquele que só ao luar descobre o seu caminho e que, como punição, apercebe a aurora antes dos outros." - Oscar Wilde

http://www.youtube.com/watch?v=yCKs6uFn-u8

segunda-feira, 21 de março de 2011

brisa

Alentejo. Alto Alentejo. O céu está mais azul que nunca, nem uma nuvem a perturbar a calma alentejana. Uma ligeira brisa vinda do Sul aquecia ainda mais a seara dourada pelo sol e pelo perdurar dos tempos. Um pardal encalmado procura abrigar-se do calor por entre o trigo, enquanto que um trigueirão molha o bico num charco quase seco.
Uma criança aflita corre ao sol abrasador, esbaforida por entre o restolho onde tudo, aparentemente está calmo, corre como se estivesse à beira do fim, sem ligar ao ambiente em seu redor. O velho “Joquim” que se levantou agora da sesta está cheio de sede assim como as suas rugas estão cheias de trabalho, de trabalho de sol-a-sol, sem sequer ter um simples dia de descanso, mesmo nos dias santos.
O Tó do “Joquim da Uva” lá continua a sua tarefa cansativa de ir procurar água para o cansado avô. Corre como se tivesse asas nos pés. Ficam felizes aqueles que o vêm na tasca da pobre e velha aldeia de brandos costumes a ajudar o seu velho e pobre avô. Consideram-no “um rapaz daqueles que já não há”.
Finalmente chega. Põe em cima do balcão, ao qual mal chega, um cobrezito que mal chega para uma garrafa de água das pequenas, mas que amável senhor Isidoro troca por uma garrafa de litro e meio e um punhado de guloseimas.
Então os habituais clientes da tasca do “Cantinho” sorriem ao ver o Tó agradecer e desaparecer num ápice, esforçando-se para agradar a quem lhe é agradável
A criança toma o mesmo caminho mas em sentido contrário, passando por searas, charcos, trigueirões e pardais, por pedras perenes e por pequenos répteis que se arrastam.
Chega ao pequeno monte. O avô espera-o sentado numa cadeira de pau, encostado a uma mesa velha de madeira escura, com uma telefonia a passar no negro da casa um cante alentejano. O “Joquim da Uva” está feliz por o rever, aquele petiz esforçado por ser trabalhador, louvado por ser agradável.
O velho mata a sede, o jovem cumpre o dever e os pássaros espreitam a leve brisa fresca de uma triste nortada.

"Antes ser um homem da sociedade, sou-o da natureza." Marquês de Sade

http://www.youtube.com/watch?v=5SWIPlgciSs

sábado, 12 de março de 2011

uma manhã de Inverno

Saí de casa atrasado, mas ainda assim não me apressei.
O elevador esperava por mim no meu piso, o botão do piso 0 foi pulsado. O elevador deselevou-se pesadamente por meio de carretos e rodas dentadas.
Desci o lanço de escadas que me precipita sobre a rua. O automatismo da porta funcionou e um estalido ecoou.
Saí à rua e havia pessoas. Poucas pessoas. Solitárias na rua como eu, e pouco me interessa se são solitárias em casa ou nos carros ou em qualquer outro sítio.
Passo por duas senhoras que aguardam o seu turno no multibanco. As suas mãos não param, estão nervosas. A escravatura da moda obriga-as vilmente a usarem roupa desajustada de Verão no Inverno (pergunto: não tinha sido abolida a escravatura?).
Deixo para trás esta gente e dobro a esquina, desço as escadas de acesso ao metropolitano e dou de caras com caras fechadas, olhos ramelosos, ouvidos fechados por auriculares, punhos cerrados que carregam malas cheias de futilidades ordinárias. O seu passo é apressado, como se desejassem voltar ao seu ritmo enfadonhamente repetitivo.
Ninguém repara em mim enquanto eu reparo no resto. Ali o que tudo importa são os sons que não ouvem. O aviso de obliteração do bilhete, o aviso de fecho de portas, o tilintar dos trocos na máquina das franquias de bordo, os baques dos sapatos no soalho.
As pessoas continuam surdas e escravas. As palas invísiveis que usam nos olhos permitem-lhes não me ver. Encontro-me a fazer um slalom perante elas para que não esbarrem comigo.
O túnel findou, subo à rua, ébrio da cegueira social dos demais.
O sol torna-me a invadir os poros e o oxigénio marado envenena-me os pulmões.
Olho para o relógio e estou atrasado... atrasado para a escravatura.

"A escravidão é o estado natural do género humano" - Xavier Maistre

http://www.youtube.com/watch?v=7e3-Vg1gIx0

sábado, 12 de fevereiro de 2011

cheio de vazio

A noite vai escura, as ruas estavam iluminadas com o forte cheiro a petróleo queimado. A Lua Nova já se pôs e a noite ainda agora começou.
As ruas estavam vazias. É dia 24 de Dezembro e eu sigo o passo sozinho.
Olho pelas janelas adentro e vejo caras sorridentes. Olho para dentro de mim e não vejo senão tristeza, peso, lágrimas.
A chuva que me molha o corpo não me aquece o espírito. Este segue o percurso da água perdida que encontra como destino a sarjeta. Tenho a tristeza por companhia, e o fundo de um copo de vinho tinto como finalidade.
A minha tristeza agudiza-se por cada esquina de dobro. O meu rosto enconva-se em cada encontro fortuito com o vazio.
Vou andando vazio, perdido, etilizado, perfeito.
Na escuridão trôpega reecontro-me puro comigo. O que me afecta é meu. Nada nas ruas me chateia. Ninguém nas casas me interpela.
Assim continuo, triste e seguro. Seguro que o meu Fado acabará na minha morte, na minha morte solitária, bêbeda, olhando vazio pelo vazio de um copo vazio, que me vazou os bolsos e a vida.
a vida expirar-se-á num último sopro nada tenaz, fraco, frouxo. Um estertor limpo, como as ruas molhadas e escuras que piso.
Procuro desajeitadamente por chaves no bolso das calças coçadas e rotas.
Nada encontro.
Tenho a noção que não as perdi. Aliás, recordo que não me recordo da útima vez que as encontrei.
Apercebo-me que estou em casa e que não preciso de chaves.
Não hesito e deito-me, assim vestido e mortalmente pândego.
As arcadas são o meu tecto. O chão da praça pisada e repisada a minha cama. A fachada uma das quatro paredes.
Fecho os olhos e adormeço. O meu desejo para o Natal deste ano?
Talvez não acorde a tempo.


"eu sou um homem só, um único Inferno" - Salvatore Quasimodo

http://www.youtube.com/watch?v=sc54vcmcZKA

segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

querer ver

Uma rua vista de uma janela algures na cidade à meia manhã. a meia luz da meia estação entra-me pelo quarto e transforma a parede alva em minha frente cinzenta. Cinzenta é como me sinto. Sozinha no meu quarto, sem ter com quem falar, porque não quero falar com ninguém. Não quero falar a vontade que tenho em falar. Envergonha-me falar por necessidade.
Lá fora a cidade parece adormecida, no seu torpor laboral. Todos estão encerrados a trabalhar e deixam as ruas desertas, inférteis, como eu estou. Estéril, vazia, oca, sem vida. O namorado e o amante enchem-me o coração e esvaziam-me por dentro. Eu sou uma sombra cheia de amor e prazer. O calor que me dão tornam-me fria. O sexo que tenho torna-me frígida. Lá fora o torpor continua. A produtividade vaza as ruas. Os carros, os autocarros, os táxis, o metro encerram quem resiste ao encerramento do trabalho.
Eu luto contra isto fechada em casa. Vazia e cinzenta. A minha luta é inócua e solitária.
Os meus olhos afundam-se na minha cara. Tenho dinheiro que me sobra, tenho amigos que o são, tenho trabalho por acabar. Sinto-me vazia... não quero felicidade, pois essa encontro-a em cada sorriso que espio através da janela. Procuro outro estado de espírito, leve, translúcido, simples, que me mostre coisas que nunca vi, com um significado maior. Não quero viajar mais, quero descobrir o que já foi descoberto pelos olhos dos outros e torná-lo meu, MEU.
O meu calcanhar bate desinteressadamente ao som de uma música que me diz algo, não sei o quê, não quero saber o quê. Sinceramente sei o que me traz essa música, mas não quero saber, quero tornar-me maior do que o que tenho, sem deixar de ser quem sou.
A parede continua cinzenta. Os meus olhos afundam-se.
A campainha toca. Levanto-me lenta e pesadamente. Abro a porta. É o carteiro.
Tem um pacote para mim. Abro-o. É a minha alma e os meus olhos.
O dia clareia e os pássaros cantam.

"o essencial é invisível aos olhos" - Saint-Exupéry

http://www.youtube.com/watch?v=nz542iQchN4