quinta-feira, 3 de dezembro de 2015

Amor Impresso

A verdade é que gosto de comprar livros em alfarrabistas.
Gosto do toque usado do papel, do cheiro vivido da tinta velha, dos vincos rugosos das páginas, das marcas duras da capa, das marcas sujas de comida ou bebida.
Gosto de imaginar o que outra pessoa terá sentido ao ler exactamente o que eu leio. Imagino, durante a narrativa que leio, uma outra narrativa, o sonho acordado de uma pessoa a ler um livro, este livro.
Os meneios, o puxar o cabelo para trás da orelha, o olhar de lado.
Imagino a pessoa a ser apanhada numa paragem da STCP a cheirar um livro, da mesma maneira que eu sou surpreendido na estação da Benedita.
Gosto tanto de me sentir assim que hoje acordei ainda era de noite e cheirava-me a tinta.
No entanto deixei-me ficar na cama até ao nascer do dia.
Quando a luz clara apareceu vi a cara gigante de uma rapariga ruiva, sardenta e esbaforida dentro do que me pareceu ser uma carruagem de metro.
Virei-me para o lado esquerdo e tinha uma letra "m" em Times New Roman. Olhei para o outro lado e tinha um pequeno espaço antes de um ponto final.
Por momentos fiquei em pânico, desorientado e com o estômago esquisito, mas pouco depois entendi tudo: eu sou já uma parte do livro.
Eu sou o "A" de Amo-te, a ser lido pela rapariga do metro.

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Vitorino em Carta

Querida não sei o teu nome,

Ontem deitei-me a pensar em ti.
Depois de um belo repasto em família e de um conhaque francês, depois de brincadeiras com a minha filha e de a ter ajudado com os trabalhos. Depois de um "Boa noite Inês. Amo-te" e de uma imitação cobarde a um beijo sentido.
Antes menti e disse que tinha ficado a trabalhar um pouco fora de horas.
Hoje, ao café com leite e à sandes mista, lembrei-me que adormeci a pensar em ti.
Lembrei-me da primeira vez que te aluguei. Devias ter uns 15 16 anos. Foi há 7 meses. Nunca me beijaste nem gemeste. Acho que nem sequer olhaste de sempre que eu estive por cima de ti.
Adormeci a pensar em ti, não apaixonadamente, mas comovido. A tua última memória em mim foi o teu corpo parado à beira da estrada, ao pé da paragem do 723.
Lembrei-me do teu cheiro a vida. Suor. Pobreza. Mato. Outros homens. Sexo. Inocência perdida à força.
Sempre que chegava perto de ti, à hora marcada, ajeitavas o desajeitamento em que algum outro Coronel te tinha deixado. Sacudias folhas secas e areias.
Ontem, quando te deixei não sacudias folhas nem te arranjavas. Mal te via na estrada. Passei por ti e não parei, mas travei.
Vi uma seringa no chão e um sorriso aliviante na cara. Triste porém, sempre triste. Mas bela, sempre bela.
Sensível arranquei e agridoce me senti.
Triste e feliz por ti.
Não te tocarei mais, mas também não serás nunca mais tocada.
Os quinhentos escudos deixam de fazer falta.

Hoje o pão sabe melhor.

http://natura.di.uminho.pt/~jj/musica/html/vitorino-boleroDoCoronel.HTML
https://www.youtube.com/watch?v=iUUfDb_NxHg

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

Sexta-feira à Noite

É sexta-feira, e ao contrário da maioria do futuros mortos que me rodeiam, não tenho vontade de convívio.
Aliás, nem hoje nem ontem nem noutro qualquer dia da semana.
Já fui em tempos um ramboieiro, um Liberace sem desorientação sexual. Hoje sou apenas um gajo que se fica em casa, não escondido nem agorafóbico, apenas me sinto bem em casa, melhor do que em qualquer outro sítio.
Luzes apagadas, televisão apagada. Na verdade a última vez que vi televisão ainda o Carlos Fino estava em Bruxelas.
E não, não sou um freak. Tenho namorada, gosto de cozinhar, trabalho como tradutor, tenho amigos mas faço tudo às escuras.
Na verdade desde 1997 que não vejo nenhuma luz dentro de casa.
Na verdade, queimaram-me a cara num assalto e fiquei cego em 1997

sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Sinais de Fogo

Naquele dia quente de Outono, prenúncio de morte. Ou seria de vida? É que isto do fogo nunca se percebe, é como o amor, como dizia Camões, ora amargo ora doce.
Ao longe, após um cabeço de Terra, via-se emergir uma cinta vertical de fumo nem negro nem branco.
Pasto diziam os mais velhos, vapor, diriam os que não conhecem a zona e presumem que o pouca terra chega a todo o lado.
Curioso e desocupado agarro no furgão e vou até onde der. Tenho descobrir o que é aquilo, só para saber, sem utilidade alguma.
Subo montes e vales de ramos secos que se torcem e partem sob o peso escuro sujo dos pneus.
Chego ao alto e procuro. Aguço a visão em 360 graus e aos 197 encontro o foco do fogo: uns putos assam uma lebre gigante, com mais de um metro de comprimento. Tiveram de mandar a baixo um eucalipto e queimá-lo.
Faço-me notar e buzino. Os miúdos ficam contentes por me ver e chamam-me.
Encontramo-nos a meio do caminho e eles querem que eu traga mais gente para comer e batatas cozidas.