quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Amor Über Alles

- Eu já te disse que te amo?
- Como?
- Eu amo-te. Amo-te como todos os clichés do amor anunciam. Não durmo a pensar em ti, e quando durmo sonho contigo, as nossas mãos a dar-se e a unir-se num só corpo. Ou melhor, a extensão de ti em mim e vice-versa.
Amo-te da forma em que o coração tem síncopes e parece que o peito se torna pequeno por ele bater por ti.
Deixa-me acabar por favor.
Eu amo-te como o poeta que se queima sem se queimar, como a cortiça nasce do sobreiro ou como o mar se enrola na areia. Amo-te chachadamente, ternurentamente, depressivamente, obsessivamente. Amo-te como as flores amam o sol ou os morcegos amam a noite e o mundo ao contrário. Amo-te como uma criança gosta de perguntar coisas ou uma velha gosta de dizer no meu tempo é que era. Amo-te como a Inquisição amava a fogueira ou como um milionário ama o seu dinheiro. Amo-te mais que tudo e que todos e amo-te como nenhuma outra coisa.
A minha vida só faz sentido contigo, e contigo a meu lado. Só tu tens o poder de me mandar calar e eu obedecer. Só tu poderás um dia pedir que me mate, e o farei por amor a ti.
No fundo, amo-te.
- Eu gosto de ti, a sério, mas não te amo. E além do mais eu sou casada!
- Eras. Matei o teu marido. Agora já me podes amar?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Noites Escuras


Ela está farta das luzes laranjas da noite. Prefere as brancas, frias, e não estas cores quentes.

Prefere até ter apenas o luar nas noites da lua cheia. Umas 3 / 4 noites sem luz artificial nas cidades.

Nessas noites ela poderia ver as estrelas com mais clareza, a silhueta da cidade com mais definição.

Numa noite dessas poderia até passar incógnita nas pessoas que se evitam na penumbra. Mais, nessas noites não tinha que cumprimentar nem ser simpática. Seria só mais uma gata parda entre parda gente.

O pior de uma noite assim era poder morrer às mãos de um pervertido social, ou de alguma mulher que a reconhecesse.

A noite sem luzes é a noite de folga de Laurinda, a prostituta.

Chocolates e Marmelada


Manhã de domingo.

Eu ainda meio acordado e meio rameloso visto a roupa que a minha mãe me deixou aos pés da cama.
Camisa aos quadrados, calças de bombazine, pullover verde e sapatos novos. Pretos.
Não me posso esquecer de usar fio e pulseira de ouro.
A mãe chama-me ao longe, mas de perto o suficiente para eu a ouvir e sentir medo de levar um açoite.
Despacho-me e como uma sandes de marmelada que ela me preparou. O pão é de ontem mas a marmelada é muito docinha.
Dá-me leite quente, mas eu prefiro o chocolate que a minha avó me há-de dar no caminho.
O meu pai já está todo aperaltado e eu quero usar um relógio de bolso e um chapéu de aba quando for do tamanho dele.
Saímos os três a pé e o meu irmão de cinco meses ao colo.

Hoje é dia de festa da igreja. Vem cá o Senhor Bispo dar a Bíblia aos moços que têm mais um ano que eu. Alguns deles nem sabem escrever o nome deles.
Acho que fazem isto por ser bonito e é assim que deve de ser.
Não percebo, mas pronto.
Para o ano sou eu a estar vestido com uma opa branca e uma cruz de madeira ao peito e a fazer força para não me rir.
Deve ser por esta altura e o Senhor Bispo há-de vir bendizer a Bíblia a gente.
Eu já sei ler hoje, por isso para o ano sei ler melhor. E nesse dia hei-de mostrar ao Bispo que sei ler!

E depois vou perguntar ao Senhor Bispo que se deus perdoa tudo e todos e é amor, porque é que há Inferno e porque é há um menino na minha escola que diz que deus se chama Alá e que não o deixa comer sandes de chouriço.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Livre à Condição

A avaliar pelas estrelas devem ser umas três da manhã.
Acordei com os rins a chicotear-me as costas.
Passo pela casa de banho, abro a porta da rua e mijo 30 metros à frente, ao relento e para o tronco de um pinheiro vagabundo.
Imagino a imagem desta cena: um gajo que tinha tanto de careca como de grisalho, levemente anafado, de pijama, de madrugada, a mijar no meio do pinhal, mas em frente a uma moradia.
Certamente iria passar umas horinhas ao posto da GNR lá da vila, e teria de explicar porque é que não usei a minha sanita, não tendo sequer ingerido qualquer tipo de álcool naquela noite.
Eu responderia que mijei na rua porque me apeteceu, porque poupava uma descarga de água, porque aquela urina não ia matar a árvore, porque o relento é saudável, porque gosto da noite, sei lá mais o quê. Diria que sou livre, num país livre e democrático, ARRE!
E iam-me responder: pois é, é livre, mas só mais ou menos. Urinar na via pública é um atentado ou pudor, punido por lei, Sr B.
Saio da imaginação, dou três sacudidelas e vagarosos passos até ao portão.
Já fiz este percurso umas boas milenas de vezes, mas desta vez sinto-me oprimido.
Se há 5 minutos me senti livre de ir de pijama à rua, no meio de uma noite amena de primavera, agora regresso a pensar que sou como uma garrafa vazia ao largo no mar: posso apanhar as vagas que quiser para onde quiser, mas haverá sempre um dia em que serei lixo.

Sapatos Negros

O seu cheiro quente e perfumado, a sua voz baixa e sensual, o seu corpo torneado e sem adornos, as suas mãos longilíneas e delicadas, os seus sapatos caros e negros.
A ausência de roupa no seu corpo e a dizer-me amo-te e eu a responder coisa nenhuma a não ser beijos e as minhas mãos a quererem sentir a sua pele por inteiro, sem se cansarem mas sempre em vão.
Sabia que se viria sentar no meu colo, com o cabelo a tapar-lhe parte do rosto, deixando-lhe apenas um olho castanho escuro à mostra.
O meu corpo musculado em certa medida contra o outro, pele contra pele, volúpia contra volúpia.
Havíamos de acordar em concha. Eu primeiro, como sempre.
Eu a levantar-me, a fazer o pequeno almoço e a pensar levá-lo à cama, e nessa altura a paixão da noite anterior acorda, sorri e diz-me: "és o homem da minha vida André"
E eu digo: "E tu o da minha Alexandre".

Abraçamo-nos pela primeira vez com a luz do dia e eu roubo um gomo de laranja do tabuleiro.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Amante em Playback


Ela só queria saber como era um bastidor da vista da cadeira do apresentador, e ter alguém como ela a penteá-la, a dar-lhe mimo e a mentir-lhe acerca de quão bela estava no hoje daquele dia.
Queria um dia saber como era falar para a câmara antes de receber o retoque de maquilhagem, dado por alguém como ela, durante o intervalo ou uma VT.
Quando saía do trabalho, por vezes já noite tardia, tinha os pés doridos e inchados e na mão uma mala cúbica.
Quando chegava a casa, sonhava acordada no banho e mexia os lábios sem imitir som como se fizesse playback agarrada ao chuveiro.
Tinha deixado o marido por ser roliço e contabilista, mas dizia que era por já não sentir a chama.
Era amante da nova coqueluche do canal, mas só às segundas-feiras, no resto dos dias era amiga de uma suburbana como ela e solitária na maior parte das noites.
Um dia teve a sua oportunidade: o seu amante arranjou-lhe uma entrevista no programa da manhã, para falar sobre a vida de maquilhadora de TV, e, como bónus, podia cantar uma canção a seu gosto, já que cantava bem.

Nesse dia maquilhou-se em casa, sozinha.
Nesse dia apanhou o metro até ao canal de cabeça levantada.
Nesse dia maquilhou os apresentadores como sempre.
Nesse dia foi maquilhada para a TV como nunca.
Nesse dia a entrevista correu bem, riu muito, nervosamente.
Nesse dia cantou mal, pior que no duche.
Nesse dia foi a chacota das redes sociais e dos programas cor-de-rosa
No dia seguinte ninguém soube dela, nem deram pela sua falta.

Menos o amante.