segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Memórias


Hoje, ao deitar, recordei-me dele.

Ainda que o tivesse visto apenas por alguns segundos retive tanto dele!

Tinha rugas de velhice, nariz e orelhas de velho.

Os nós dos dedos eram grossos, como se o cálcio tivesse encontrado ali um sítio para prosperar.

A sua voz rouca, calma, vivida, paternal. Era a voz segura de quem já teve demasiadas certezas na vida para continuar certo acerta de tudo.

Os seus passos eram fortes e incertos. Uma certa rigidez nos joelhos.

Envergava uma roupa escura. Demasiado escura para a época. Talvez estivesse de luto.

Calçava botas mexicanas, carregadas de lama. Hortelão presumi eu.

Chegado ao pé de mim disse, muito clara e sincopadamente: dá-me o telemóvel e a carteira seu badameco ou dou-te um tiro!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Ficar para não morrer

Quando tudo falhava conheci-te. Mas isto é o fim da estória.

Há uns meses valentes fiquei sem marido. Depois fiquei sem trabalho.
E por estar sem trabalho fiquei sem casa. Voltei para os pais.
Para não estar a sobrecarregar os meus pais vendo o carro. Fiquei sem carro.
Quando se acabou o dinheiro do carro fiquei sem maneira de comprar comida. Fiquei na bancarrota.
Estando na bancarrota fiquei desesperada.
Por desespero comecei a pensar matar-me. Os meus pais ainda tinham os meus irmãos. Fiquei depressiva.
Um dia estava à chuva e mais triste que nunca. Fiquei encharcada.
Tu deste-me abrigo no teu guarda-chuva e fiquei reconfortada.
Olhei para ti, com o cabelo molhado à frente dos olhos e achei-te bonito. Fiquei quase envergonhada.
Convidaste-me para um chá para que eu me pudesse aquecer. Fiquei enternecida.
Como eu não tinha para onde ir e tu já tinhas ido onde tinhas de ir ficamos horas à conversa. Fiquei encavacada.

Apaixonei-me por ti. Fiquei sem chão.