terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Passos de Dança a Arder


Hoje lancei fogo a uma barraca.
Tudo aconteceu quando vinha do almoço, mesmo antes do relógio bater as 14h, que é a hora de entrada aqui no trabalho.
Acreditem que nem foi por maldade. Não sei quem era o proprietário do tugúrio, portanto causas como a xenofobia, a homofobia ou outra estão excluídas. Na verdade nem sei se era habitado. Não me preocupei. Provavelmente estava abandonada há anos ou servia de esconderijo para traficantes de droga.
Voltando à narração do acontecimento, tudo aconteceu perto das 14h. vinha caminhando desde o restaurante até ao escritório e o olhar relembrou-me daquelas barracas no meio do pequeno vale que se afunda perto de onde trabalho.
Estava algum calor, e eu estava aborrecido. Tinha comido demais e não me sentia confortável na minha roupa. Acendi um cigarro.
E ao acender o cigarro, ao sentir o calor do isqueiro e o fumo do tabaco lembrei-me que tinha saudades de um incendiozinho. O Inverno tinha sido muito chuvoso.
Então esperei pelo momento em que não passassem carros, galguei meio vale e acendi umas ervas secas ao lado de uns pneus já ressequidos. Foi o suficiente.
Voltei a galgar meio vale e encaminhei-me para o trabalho como se nada se tivesse passado.
Passado uns cinco minutos começaram-se a ver leves levadas de fumo negro. Depois pesadas levadas e depois um forte jorro negro começou a precipitar-se sobre o azul celeste.
Foi um instante até polícia e bombeiros aparecerem.
Foi só nessa altura que o meu dia melhorou. Na verdade foi aí que o meu dia ficou perfeito.
É que assim que me apercebi da chegada das autoridades competentes para apagar fogos e tomar conta da ocorrência apressei-me para rua, meti-me em tronco nu e dancei ao som e luzes das sirenes.

Completei-me.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Mudar a Escrita

Hoje não vos invento nenhum conto. Hoje falo de mim.
A verdade é que em muitas das estórias que escrevo alguém acaba morto ou mutilado, e isso já deixou de ser surpresa. Quem me lê já espera por isso, apenas não sabe como é que o fatalismo acontece.
A minha mãe já me disse que o que eu escrevia era demasiado violento e algo previsível.
Houve até alguém que me perguntou porque não escrevo sobre amor de uma forma bonita, e eu disse que tinha aquela história do autocarro, que é fofinha, mas que na verdade não há grandes histórias de amor perfeitas. Vejamos o exemplo do Drácula ou do Romeu e Julieta. Nessas o clímax não acontece no final. No final apenas há infortúnio, pranto e fenecimentos.
É isto ou Nicholas Sparks.
E escrever sobre coisas más cria um espanto na pessoa. Acho que nos habituámos aos sentimentos positivos. Acho que o aceite é uma vida e uma estória livre de crueldades e malvadezas, mas quando nos deparamos com elas, com essas verdades, o nosso meão sentimentaloide dispara umas quaisquer hormonas ou proteínas ou seja lá o que for, e espantamo-nos, revoltamo-nos, enojamo-nos.
É por isso mesmo que gosto de escrever em negro, de acabar as estórias como devem acabar: em mortandade ou em pathos. É assim que acabaremos todos um dia. Mortos. E muito provavelmente a sofrer e\ou a fazer sofrer.
Mas por todas estas almas que me interrogam eu resolvi experimentar de forma mais íntima a maneira como escrevo, torna-la biográfica, mais vívida.
É por isso que antes de escrever isto eu ingeri um copo de veneno.
Veneno dos ratos misturado com bagaço, para disfarçar o sabor, mas não a cor.
E a verdade é que já sinto uma febre fria e já não sinto o respirar nem as pernas.
Aliás, respirar é cada vez mais difícil.
Acho que não consigo acabbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb

quarta-feira, 2 de maio de 2018

Sonhos Realizados

Perguntaram-lhe pelo mundo onírico. Pelo seu mundo onírico.
Começou tartamudeante e dizer que só queria ser feliz, que queria ter um bocadinho mais de dinheiro para não ter que dividir casa com uma italiana universitária e para que pudesse viajar até à Tailândia. Que gostava que as pessoas conduzissem melhor e que o metro funcionasse melhor.
Insistiram. Perguntaram (ou pediram?) por algo mais pessoal, menos geral. Toda a gente quer que o metro funcione melhor, argumentaram.
Então ela mordeu o lábio, enrubesceu e disse baixinho, como a Cinderela da canção: “Quero ser feliz. Quero alguém que me queira mais feliz do que desejo para mim, e que a minha felicidade transborde para ele.”
“Quero ser lamechas, quero que numa tarde fria de Outono, num passeio à beira mar as ondas do meu cabelo sejam as mais audíveis, e que a espuma no areal seja menos importante que a espuma dos nossos dias. Quero que ele me feche o fecho do vestido de noite e quero que ele se embebede com o vinho que escolhi para o nosso piquenique à lua cheia.”
“Quero fugir de mosquitos de mão dada e gozar quando ele, na sua forte masculinidade, se queixar porque fez um golpe no dedo ao cortar cebola.”
“Quero acordar nua com o pequeno almoço pronto e quero despi-lo sem a obrigação de que nessa noite tenhamos sexo.”
“Quero que ele me ampare bebedeiras e quero estar ao lado dele no Marquês mesmo sendo eu do Sporting.”
“Quero fazer shotgun a conduzir daqui para Aljezur e parar a meio só ele para me comprar flores que vão fugir pelo vidro aberto.”
“Quero vê-lo a adormecer no meu colo e quero senti-lo a acordar horas a seguir.”
“Quero a simplicidade de uma complexidade. Quero sorrir todas as manhãs quando ele me beija.”
“Quero ajeitar-lhe o nó da gravata antes de uma entrevista de emprego e rir ao ver quão feios ficamos em fotos de casamentos de amigos.”
“Quero que me proponha coisas parvas e infantis, como saltar a vedação de uma escola só para jogar à macaca ou furar a entrada num qualquer museu.”
“Quero essencialmente tudo isso e que a italiana vá mais vezes a casa.”
Acabou exausta, emotiva e apaixonadamente deslavada. Quase chorava e mordia novamente o lábio.Antes que alguém pudesse falar outro alguém barbudo irrompeu na sala e perguntou: o workshop de cozinha afegã é aqui?

Ela riu alto.












terça-feira, 17 de abril de 2018

Uma Luz que se Apaga

Andavam pela mão dada pelo Mercadinho dos Clérigos.
Não procuravam nada em particular, apenas passear a sua paixão e encontrar alguma eventual pechincha.
Ambos gostavam de música. No mês passado tinham comprado um gira-discos dos antigos. Um Technics sem agulha e com metade da etiqueta partida. Na verdade era um “Nics”.
Tinham alguns vinis dos pais: Demis Roussos, Roberto Carlos, Julio Iglesias e Zeca Afonso, entre outros de qualidade mais duvidosa. E ABBA, muitos.
Pararam ao pé de uma banca com discos em canastras de plástico e começaram a revolver. Encontraram a sua pechincha: The Queen is Dead dos The Smiths. Não tinha a capa em boas condições, mas o vinil parecia não ter danos. E pelo valor que pediram valia a pena o risco.
Ela carregou o vinil na mão esquerda. Ocupava a mão direita com a mão esquerda dele e ele mantinha a sua mão direita no bolso, ocupada a rodopiar uma caixinha de veludo com um anel de noivado.
Caminharam até ao fim da feira, no sentido da casa que partilhavam há quase um ano, ali perto da Escola Gomes Teixeira.
Quando chegaram à Praça da Galiza, mas ainda no passeio ele começou a estancar o passo, a puxa-la pela mão. Ela perguntava Que se passa amor? E ele, enfim confiante ajoelhou a perna direita, tirou a caixinha negra do bolso e começou: Cristiana, sei que não foi aqui que nos conhecemos, mas foi aqui que me apaixonei por ti. Não ensaiei grande coisa, e estou a reparar que estamos no passeio e não na relva, mas não aguentava mais: Queres casar comigo?
Ela engoliu em seco. Tremeu das mãos. Começou a chorar. Disse um Sim envergonhado. Ele disse Não percebi. Queres casar comigo? Ela disse sim, Sim, SIM! e como que assustada pelo sim começou a recuar. A dar pequenos passos para trás. Chorava intensamente, como se a sua cara fosse uma floresta tropical na altura das monções.
Ele sorriu, tanto de feliz como de nervoso como de amante como de alívio. Mas logo a suas feições começaram a mudar para preocupado, assustado, medroso.
Num acto quase de instituto correu para Cristiana, com a velocidade que o nervoso quente lhe permitia e empurrou violentamente Cristiana.
Cristiana desequilibrou-se e acabou por cair uns metros ainda mais atrás. Não percebeu de imediato o que tinha acontecido.
Quando recuperou o tacto e reconheceu o ambiente e a rua em sua volta, reconheceu também que ele tinha acabado de ser atropelado por um autocarro.
O seu corpo jazia na estrada, 4-5 metros à frente do autocarro. Havia já um pequeno ajuntamento de pessoas. Um pequeno laivo de sangue saía-lhe do nariz. O peito não subia nem descia. Ele não respirava.
As lágrimas de Cristiana quase voltaram. No chão, a meio caminho entre ele e ela estava o vinil que tinham comprado. Na mão direita dele continuava a caixinha, agora fechada.
Meio trôpega da montanha russa de emoções levantou-se, pegou no disco, foi ter com ele.
Deitou a sua cabeça no seu peito ainda quente e inerte, retirou da caixinha o anel e colocou-o.
Servia na perfeição.
Sem chorar disse:
"And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die"

quarta-feira, 21 de março de 2018

Amor e Cegueira

Não sou eu que escrevo esta história. É um amigo meu. De longa data, mas de poucas vezes.
Faz muito tempo que perdi a capacidade de escrever, mas não a de ditar.
Aparte: Espero que ele tenha escrito isto palavra a palavra como eu a ditei (e sim, também ditei o que até aqui se lê, parênteses incluídos).
Quer-se dizer, na verdade até nunca tive grande jeito para escrever, tinha sim para o engate.
Comecemos: depois de na adolescência ter descoberto que gostava mais de miúdas que de jogar à bola, todo o meu mundo se cingiu a isso.
Só estava bem a conhecer mulheres, a estar com mulheres, a dançar com mulheres, a despir mulheres.
Não me saí nada mal, porém sou elegante o suficiente para não numerar as mulheres da minha vida.
Mas há uma altura, um momento, um bocadinho em que há alguém que nos cativa não só pelo olhar e coração, mas por algo maior. É nessa altura que percebemos o que é o amor e que existe, que não é só dos outros.
A pessoa a quem todo o meu ser se dedicou, matéria e forma, corpo e alma, era particularmente linda. Divinal, diriam uns.
Amávamo-nos tanto como qualquer outro casal, mas naquela altura achávamos que ninguém se amava como nós nos amávamos.
Fazíamos tudo juntos, como a equipa dos cinco violinos do Sporting ou como a 9ª sinfonia do Beethoven.
Muitos homens voltavam a cara para tirarem um melhor e medidor olhar sobre ela, e algumas mulheres torciam os lábios ao olharem para mim.
No início, bem no início, adorava ver aquela inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos.
Com o tempo comecei a deixar de achar piada. Aquele bem fadado pedaço de feminidade pertencia-me. Sei que pertencer é uma forma feia quando se fala de um deter posse sobre outro ser humano, mas a verdade é que ela pertencia-me tanto como eu pertencia lhe pertencia. Reforço: juntos eramos muito mais que dois seres separados, e achávamos que eramos muito mais que a restante humanidade.
Comecei a ficar melindrado com aqueles olhares que de inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos. Comecei a reclamar Olha aquele pacóvio a olhar para ti. Deixa-o, tu sabes que não tens de te preocupar. Eu sei que és a mulher mais bela que alguma vez eles vão ver e que caminhas a meu lado e é a mim que agarras a mão, mas… Não há mas, só eu e tu.
Mas com o passar dos dias, meses eu não me acalmava. Ela não me acalmava. A sua mão na minha não me acalmava.
Comecei a transpor a raiva que me dava os esgares de inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos para todas as coisas. Aquela camisa que me apertava o pescoço, o sono dela durante a nossa série preferida, o tempo que a água demorava, ou a maquilhagem perfeita dela.
Tudo me fazia perder a paciência. Na verdade já tinha perdido a paciência num olhar dalgum badameco que olhou para ela.
- Mas porque é que tu ficaste tão melindroso? Eu continuo a gostar de ti como sempre!
- Eu também te amo, como sempre, mas não quero que olhem para nós, que olhem para ti! Às vezes preferia que fosses menos bonita.
- Isso foi muito estúpido e egoísta.
Nesta altura eu chorava por causa da cebola que se queria refogada.
- Cala-te!
- Parvo, criança!
- É a verdade, queria mesmo que fosses menos bela. Amo-te, mas odeio que sejas perfeita!
- Vou-me deitar.
- Espera…
E com a faca a cheirar a cebola cortei-lhe a cara. O sangue pingou muito pela cozinha. Ainda consigo lembrar o olhar dela não de dor física, mas de dor interior. Como se a tivesse mortificado.
Passado uns momentos percebi que toda a gente iria continuar a olhar para ela mas sem aqueles olhares que de inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos. Senti-me triste e incapaz. Nunca ressentido ou culpado.
Triste, mas já não incapaz pus resolução a tudo isto: ceguei-me com a mesma faca. 

E é por isso que perdi a capacidade de escrever, mas não a de ditar.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Conversa Surdas


Conheço muita gente estranha. É um facto. E não é que estranho seja mau, é só que fogem aos cânones da sociedade. Casais que não querem ser pais, raparigas que querem viver, viajar e comer sozinhas, homens que só gostam de roupas de mulher, etc e tal.
Conheço muita gente estranha, mas a mais estranha será uma com quem não falava desde os tempos da primária. Chama-se Idalina.
Na verdade sabia que está viva porque tem conta no Instagram e de vez em quando põe fotos de vinho branco ao pôr-do-sol numa praia da margem sul.
Ontem ligou-me. Estranhei. É que ela não fala com gente que esteja acordada. Nem ao telefone.
Sim, é isso mesmo, ela não fala com pessoas acordadas.
Ninguém sabe quando ou como começou, mas um dia, depois de ter feito 11 anos mas antes de ter completado 12, ela deixou de falar. Ao início pensou-se que seria alguma questão de violência (doméstica, na escola, abuso sexual, qualquer coisa), mas tudo foi despistado por médicos, psicólogos e polícias.
Os pais desesperaram até ao dia em que uma extensa carta em cima da mesa da cozinha explicava tudo. Aparentemente confortados com as razões escritas, não mais estranharam a filha.
Idalina tornara-se uma criança, adolescente, adulta muda para o mundo, menos para si própria.
Ela garantiu-me que continuava a falar com o resto da “humanidade”, desde que estivessem mortos, dormentes, vegetais ou em estado de coma.
Confessou-me que adorava ir a velórios, sempre vestida de cinzento, mas que o seu sítio preferido eram as urgências. Havia sempre um idoso que tinha adormecido ou alguém no corredor a quem tinha sido administrada morfina ou outro analgésico forte.
Referiu-me que um dia esperou que um sem abrigo bebesse até se esquecer que existia, e nesse momento foi ter com ele e monologaram sobre o tempo, sobre as legislativas, e acima de tudo sobre futebol. Parecia que o Benfica da Idalina ia ser de novo campeão e ela estava toda contente.
Num outro dia, ali ao pé de Al… viu um atleta que caiu para o lado a espumar-se e foi ter com ele. Sentiu-se mal por não ter ligado para o 112, mas aproveitou para falar com ele e lhe dizer que não tinha coragem de fazer exercício físico. Não era porque se achasse fora de forma, mas sim porque tinha medo que o coração dela não aguentasse o esforço ou porque talvez tivesse de pedir licença e desculpe a pessoas acordadas, e isso era uma impossibilidade.
Ficou com o atleta até o INEM ter aparecido e depois correu dali para fora… irónico.
Durante todo este tempo que falou comigo não se justificou porque se calou. E olhem que falamos mais de uma hora.
Contou-me também que certo dia, num funeral, esperou horas a fio até que a família saísse só para poder dizer ao morto que se tinha enganado a votar e meteu a cruz no PNR. E só se apercebeu na saída, quando viu o cartaz com o boletim de voto. Queria ter votado Bloco.
Mas a revelação mais absurda foi a que a levou a ligar-me.
Um dia, uns dias antes desta chamada, ela encontrou um ciclista encostado a um poste. Na percepção de Idalina aquele homem deixou-se dormir, vítima do cansaço e do sol temperado de uma manhã de Primavera. Ela achou-o bonito. Maxilar delineado, cabelo castanho claro desalinhado, pernas obviamente tonificadas, e uma ligeira barriga, suficiente para não o tornar num Adónis.
Aproximou-se dele, e disse-lhe baixinho: És giro. Era capaz de te levar para casa e depois para a cama. Se ao menos fosses sonâmbulo. Então ele respondeu: Desculpe, que disse?
 
Ela apaixonou-se logo ali e, com os joelhos a tremer, disse: Gostava de falar contigo.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Viver para Ficar

Lado esquerdo papéis.
Lado direito corredor.
Atrás e à frente pessoas. Pessoas desconhecidas mas de todos os dias.
Pessoas não amigas mas conversadoras. Pessoas não amigas mas permanentes.
Pessoas durante cinco dias. Pessoas obrigatórias.
Férias que não chegam. Férias quando chegam, não chegam.
Férias de todos, daquelas pessoas.
Férias de tudo, daqueles papéis e daquele corredor.
Fim de semana. Amigos. Fim de semana. Cinema. Fim de semana. Concertos. Fim de semana. Festas. Fim de semana. Ronha. Fim de semana. Acabado.
Lado esquerdo papéis.
Lado direito corredor.
Atrás e à frente pessoas. Pessoas desconhecidas mas de todos os dias.
Resumo: Escravo.
Ideia: Fim de semana. Amigos. Fim de semana. Cinema. Fim de semana. Concertos. Fim de semana. Festas. Fim de semana. Ronha. Fim de semana. Acabado.
Resultado: Reforma. Divórcio. Lar. Suicídio. Solidão. Luto.
Fórmula:
Fórmula:
Solução: Ouvir. Falar. Rir. Chorar. Sentir o vento. Enterrar pés na praia. Esfolar joelhos. Esfolar joelhos em adulto. Correr. Andar de cadeira de rodas. Rir. Amigos. Amor (?). Apaixonar-se. Chuva na pele. Nu ao luar. Mão na mão. Olhos nos olhos.
Solução2: Ser\fazer lugares comuns. Ser e fazer mais lugares comuns.
Resultado2: Incógnita. Fórmula resolvente. Matemática não aplicada.
Síntese: Escolhas!

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2018

Ironia ao Som das Sirenes

Mais um dia como outro qualquer na vida de uma médica, tirando os dias de banco.
Consulta para aqui, consulta para ali. Mais uma receita, mais uma compêndio verificado, analisado e duvidado. Mais um "vai correr tudo bem" ou "vamos fazer para que tudo corra bem. Ainda vai ver o seu netinho na Universidade" ou "infelizmente tenho más notícias..." (o resto decida quem lê).
Ela despiu a bata, soltou o cabelo e por entre franjas e madeixas de escuro cabelo, soltou-se um suspiro cansado.
Voltou para casa, e apesar de ter viatura própria prefere o metro. Questões ambientais e literárias.
Chegou à casa vazia. O seu marido tem um trabalho das nove às cinco. Ela tem o horário que lhe derem.
Aqueceu a chaleira, escolheu a saqueta devida, que devia ser de chá preto, a julgar pela hora.
Foi beber para a janela. Lembrou-se de uma passagem do Estrangeiro e sorriu.
O ar do dia ainda ia bem vivo e a vida naquela rua de prédios altos ia mortiça.
Deixou-se ficar.
Ele veio do escritório. Cansado de tanto responder a e-mails e atender pessoas que conhece mas nunca viu.
Ele usa o carro porque não gosta de estar à espera do autocarro. Prefere chatear-se no trânsito e fazer música rouca com a buzina do seu carro que ainda cheira a novo.
Estacionou na rua detrás e ao chegar perto de sua casa viu uma ambulância dos bombeiros. Estava com aquelas luzes psicadélicas azuis ligadas e pensou "pronto, lá desceu ela as escadas e foi cumprir o juramento não sei de quê".
Ela fazia sempre isso. Sempre que ouvia uma ambulância virava a cara. Mesmo que estivesse para anunciar a sua gravidez.
E sempre que alguém parecia que se estava a sentir mal, ela ia lá ver se podia ajudar. Ele não se chateava, algumas vezes até ficava orgulho, mas outras ficava desamparado.
Hoje sentia-se orgulhoso. Sabia que a ia ver ali ao lado da ambulância. Tinha essa certeza.
Aproximou-se. Ia surpreendê-la.
Passou por entre a multidão de dez almas que se acotovelavam e viu-a e ficou com os olhos rasados de água.
Ela tinha-se suicidado.