quarta-feira, 21 de março de 2018

Amor e Cegueira

Não sou eu que escrevo esta história. É um amigo meu. De longa data, mas de poucas vezes.
Faz muito tempo que perdi a capacidade de escrever, mas não a de ditar.
Aparte: Espero que ele tenha escrito isto palavra a palavra como eu a ditei (e sim, também ditei o que até aqui se lê, parênteses incluídos).
Quer-se dizer, na verdade até nunca tive grande jeito para escrever, tinha sim para o engate.
Comecemos: depois de na adolescência ter descoberto que gostava mais de miúdas que de jogar à bola, todo o meu mundo se cingiu a isso.
Só estava bem a conhecer mulheres, a estar com mulheres, a dançar com mulheres, a despir mulheres.
Não me saí nada mal, porém sou elegante o suficiente para não numerar as mulheres da minha vida.
Mas há uma altura, um momento, um bocadinho em que há alguém que nos cativa não só pelo olhar e coração, mas por algo maior. É nessa altura que percebemos o que é o amor e que existe, que não é só dos outros.
A pessoa a quem todo o meu ser se dedicou, matéria e forma, corpo e alma, era particularmente linda. Divinal, diriam uns.
Amávamo-nos tanto como qualquer outro casal, mas naquela altura achávamos que ninguém se amava como nós nos amávamos.
Fazíamos tudo juntos, como a equipa dos cinco violinos do Sporting ou como a 9ª sinfonia do Beethoven.
Muitos homens voltavam a cara para tirarem um melhor e medidor olhar sobre ela, e algumas mulheres torciam os lábios ao olharem para mim.
No início, bem no início, adorava ver aquela inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos.
Com o tempo comecei a deixar de achar piada. Aquele bem fadado pedaço de feminidade pertencia-me. Sei que pertencer é uma forma feia quando se fala de um deter posse sobre outro ser humano, mas a verdade é que ela pertencia-me tanto como eu pertencia lhe pertencia. Reforço: juntos eramos muito mais que dois seres separados, e achávamos que eramos muito mais que a restante humanidade.
Comecei a ficar melindrado com aqueles olhares que de inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos. Comecei a reclamar Olha aquele pacóvio a olhar para ti. Deixa-o, tu sabes que não tens de te preocupar. Eu sei que és a mulher mais bela que alguma vez eles vão ver e que caminhas a meu lado e é a mim que agarras a mão, mas… Não há mas, só eu e tu.
Mas com o passar dos dias, meses eu não me acalmava. Ela não me acalmava. A sua mão na minha não me acalmava.
Comecei a transpor a raiva que me dava os esgares de inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos para todas as coisas. Aquela camisa que me apertava o pescoço, o sono dela durante a nossa série preferida, o tempo que a água demorava, ou a maquilhagem perfeita dela.
Tudo me fazia perder a paciência. Na verdade já tinha perdido a paciência num olhar dalgum badameco que olhou para ela.
- Mas porque é que tu ficaste tão melindroso? Eu continuo a gostar de ti como sempre!
- Eu também te amo, como sempre, mas não quero que olhem para nós, que olhem para ti! Às vezes preferia que fosses menos bonita.
- Isso foi muito estúpido e egoísta.
Nesta altura eu chorava por causa da cebola que se queria refogada.
- Cala-te!
- Parvo, criança!
- É a verdade, queria mesmo que fosses menos bela. Amo-te, mas odeio que sejas perfeita!
- Vou-me deitar.
- Espera…
E com a faca a cheirar a cebola cortei-lhe a cara. O sangue pingou muito pela cozinha. Ainda consigo lembrar o olhar dela não de dor física, mas de dor interior. Como se a tivesse mortificado.
Passado uns momentos percebi que toda a gente iria continuar a olhar para ela mas sem aqueles olhares que de inveja, desdém, ciúme e por demais adjectivos. Senti-me triste e incapaz. Nunca ressentido ou culpado.
Triste, mas já não incapaz pus resolução a tudo isto: ceguei-me com a mesma faca. 

E é por isso que perdi a capacidade de escrever, mas não a de ditar.

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