quarta-feira, 14 de março de 2018

Conversa Surdas


Conheço muita gente estranha. É um facto. E não é que estranho seja mau, é só que fogem aos cânones da sociedade. Casais que não querem ser pais, raparigas que querem viver, viajar e comer sozinhas, homens que só gostam de roupas de mulher, etc e tal.
Conheço muita gente estranha, mas a mais estranha será uma com quem não falava desde os tempos da primária. Chama-se Idalina.
Na verdade sabia que está viva porque tem conta no Instagram e de vez em quando põe fotos de vinho branco ao pôr-do-sol numa praia da margem sul.
Ontem ligou-me. Estranhei. É que ela não fala com gente que esteja acordada. Nem ao telefone.
Sim, é isso mesmo, ela não fala com pessoas acordadas.
Ninguém sabe quando ou como começou, mas um dia, depois de ter feito 11 anos mas antes de ter completado 12, ela deixou de falar. Ao início pensou-se que seria alguma questão de violência (doméstica, na escola, abuso sexual, qualquer coisa), mas tudo foi despistado por médicos, psicólogos e polícias.
Os pais desesperaram até ao dia em que uma extensa carta em cima da mesa da cozinha explicava tudo. Aparentemente confortados com as razões escritas, não mais estranharam a filha.
Idalina tornara-se uma criança, adolescente, adulta muda para o mundo, menos para si própria.
Ela garantiu-me que continuava a falar com o resto da “humanidade”, desde que estivessem mortos, dormentes, vegetais ou em estado de coma.
Confessou-me que adorava ir a velórios, sempre vestida de cinzento, mas que o seu sítio preferido eram as urgências. Havia sempre um idoso que tinha adormecido ou alguém no corredor a quem tinha sido administrada morfina ou outro analgésico forte.
Referiu-me que um dia esperou que um sem abrigo bebesse até se esquecer que existia, e nesse momento foi ter com ele e monologaram sobre o tempo, sobre as legislativas, e acima de tudo sobre futebol. Parecia que o Benfica da Idalina ia ser de novo campeão e ela estava toda contente.
Num outro dia, ali ao pé de Al… viu um atleta que caiu para o lado a espumar-se e foi ter com ele. Sentiu-se mal por não ter ligado para o 112, mas aproveitou para falar com ele e lhe dizer que não tinha coragem de fazer exercício físico. Não era porque se achasse fora de forma, mas sim porque tinha medo que o coração dela não aguentasse o esforço ou porque talvez tivesse de pedir licença e desculpe a pessoas acordadas, e isso era uma impossibilidade.
Ficou com o atleta até o INEM ter aparecido e depois correu dali para fora… irónico.
Durante todo este tempo que falou comigo não se justificou porque se calou. E olhem que falamos mais de uma hora.
Contou-me também que certo dia, num funeral, esperou horas a fio até que a família saísse só para poder dizer ao morto que se tinha enganado a votar e meteu a cruz no PNR. E só se apercebeu na saída, quando viu o cartaz com o boletim de voto. Queria ter votado Bloco.
Mas a revelação mais absurda foi a que a levou a ligar-me.
Um dia, uns dias antes desta chamada, ela encontrou um ciclista encostado a um poste. Na percepção de Idalina aquele homem deixou-se dormir, vítima do cansaço e do sol temperado de uma manhã de Primavera. Ela achou-o bonito. Maxilar delineado, cabelo castanho claro desalinhado, pernas obviamente tonificadas, e uma ligeira barriga, suficiente para não o tornar num Adónis.
Aproximou-se dele, e disse-lhe baixinho: És giro. Era capaz de te levar para casa e depois para a cama. Se ao menos fosses sonâmbulo. Então ele respondeu: Desculpe, que disse?
 
Ela apaixonou-se logo ali e, com os joelhos a tremer, disse: Gostava de falar contigo.

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