segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

corre rapaz, corre

Um rapaz corria, veloz e voraz, rua acima, rua abaixo.
O seu propósito? Apenas de propósito, porque queria, porque podia
O vento inventado pelo seu correr denunciava as suas têmporas pálidas. O suor puxava lustro à sua testa.
Os seus sapatos gastos não cansavam as pernas mancebas, os buracos nas solas abriam-lhe bolhas nas plantas dos pés, que lhe doíam tanto como bolhas de sabão na cara do cliente do barbeiro.
As pernas corriam, os pés soavam, o chão passava sincopado por debaixo dos sapatos rotos. O cabelo voava ao vento inventado e o suor caia exangue no chão passado e repassado
A rua era sempre a mesma, os passos sempre do mesmo, o suor secava ao toque na terra.
Nada mutável no imutável.
A boca entreaberta, dançava aos passos trotadores. A respiração era profunda.
O sal do suor confundia-se com o outro sal, das lágrimas.
A respiração profunda confundia-se com o soluçar.
A corrida que se podia fazer confundia-se com raiva e impotência.
A corrida que se podia fazer era raiva.
A corrida que se podia fazer era impotência.

Algures num quarto mal iluminado e mal arejado um estertor final cansou pernas gastas de passos de pés com bolhas devido solas esburacadas.
A corrida que se podia deixou de se poder. A boca que respirava profundamente deixou de soluçar.
A rua… a rua era sempre a mesma, imutável.
O rapaz corria, rua acima, rua abaixo.
O seu propósito? De propósito, enraivecido e impotente.


"passa o neto, a assobiar,
a correr a bom correr
e o avô que o vê passar,
diz-lhe, a rir,
só por dizer:
Ainda te vais cansar..."
António Torrado

http://www.youtube.com/watch?v=htf-yWeX2CE&feature=related

domingo, 19 de dezembro de 2010

palavreando palavras palavreadamente

As palavras vão e vêm, como vagas, pelo Eco dos tempos, pelo troar das vozes por vezes em surdina.
As palavras, que ao serem apenas sons divertem, magoam, originam lágrimas ou mortificam. Tudo acontece nas palavras, e por elas.
Dizem que uma imagem vale mais que mil palavras, mas quantas vezes mil palavras valem mais que uma imagem? Pelas palavras originamos mundos que não existem, lugares que não foram construídos, paisagens que nunca ninguém ou coisa alguma conquistará
As palavras têm a Força do tempo, e encarceram em si a história.
Marco Polo terá inventado o Oriente, Fernão Mendes Pinto as peregrinações, o Padre António Vieira o Santo António, ou as palavras de cada um inventaram o seu autor.
As palavras são sapientes. Pelas palavras tudo se sabe, tudo se descobre e tudo falha, menos em si. As palavras nunca traem, pode-se através delas trair, mas não traem. As palavras estão ali prontas a serem usadas, afiladas, como um exército de argila no éter, imaginadas, peões da imaginação alheia, desinteressadas, ocasionais, pensadas, falsas ou reais.
As palavras vestem-se de tragédia e de comédia pelo seu uso, pelo seu detentor, que lhes dá o uso devido indevidamente, já que nada pagou pelo seu uso, interesseiramente desinteressado.

As palavras são isto mesmo, apenas sons que trazem agarrados a seu corpo sentimentos e sentidos, paradoxais, absurdas, disparatadas. Ora amargas ora doces.

“Em todo o lado essa palavra \ Repetida ao expoente da loucura! \Ora amarga! Ora doce!” (Ouvi Dizer – Ornatos Violeta)

http://www.youtube.com/watch?v=HweU-Nc__HE

sábado, 11 de dezembro de 2010

noites, sestas e outros sítios

Que sítios podemos chamar de nossos, aquele MEU momento, egoísta e único? Impossível de ser partilhado.
Muitos dirão muitos, outros tantos dirão poucos, eu direi… bem, eu direi um, o Adormecer.
O sono não é nosso exclusivo, é um Estado partilhado entre nós e o sonho, onde surgem imagens bamboleantes de dançarinas com pés de cabra e mouras com sapatos de cristal, com um sapo a beijar-lhe a face, transformando-a em bruxa que vai a casa da avó mitigar a fome do lobo. O sono não é exclusivo, é a relação libidinosa, suja e casta entre pensamento e impossível, entre o que é e o que nunca foi ou será
A vivacidade não é nem nunca será egoísta, é feita de mosaicos errantes de pessoas que por nossa vida passam, da conversas por vezes ocas como um casco de uma nau catrineta arruinada, por vezes preenchidas, como algum sonho sonhado algures em alguma cama, cheias de sentimentos, bons maus excelentes ou péssimos. A vivacidade é aquilo que a fazemos, mas não temos controlo sobre ela, não depende exclusivamente do nosso ego. Diz-se que a vida é o que fazemos dela. Nunca poderemos fazer a vida com inocuidade e sozinhos.
O Adormecer, antes do sono, é o lugar nosso, impossível de partilhar ou mesmo de se aperceber.
Não é sono, porque ainda não chegamos ao sonho. Não é vivacidade porque nos encontramos em letargia.
O Adormecer é o nosso momento, onde nada entra nem sai, onde tudo o que se passa acontece anestesiasicamente, os sentidos vão confluindo lentamente à inacção, ao torpor, porém alertas, precavidos. O raciocínio segue ou precede os sentidos, neste lugar nosso.
O Adormecer, entre o ajeitar dos lençóis e o sonho, é O lugar, é O momento, é o EU, sem que nos apercebamos. Neste lugar deixamos de ser quem somos e passaremos a ser sonho, passaremos a existir fora da existência que conhecemos positivamente, e é nesta passagem, como um limbo, um rito imperceptível e eterno, que nos encontramos connosco, apenas e só… Adormecendo saberemos quem somos apesar de nunca o sabermos

“we know a place where no cars go (…)Between the click of the light and the start of the dream” - No Cars Go, Arcade Fire

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

estreia

a estreia, a primeira vez, tão estranha como um cometa milenar, tão auspiciosa como um milagre, tão terrena como o mitigar da fome.
"a nossa vida é feita de pequenos nadas", disse um dia o poeta, ou o Sérgio Godinho... colou-se-me à retina, enlapou-se-me na pele, como parasita ao seu hospedeiro, sendo que aqui ambos parasitamos e ambos hospedamos, uma simbiose interesseira e curriqueira, que eleva matéria e massa, massificando crenças e vontades, sorrisos sorridentes, entre dentes e lábios.
no fim...o fim NADA conta, e o nada de novo na VIDA e na morte, porque a vida niilista emboca na morte perene, na morte viva, que se sente por quem não morre, mas por quem perdeu o seu nada, UM seu nada, indivisivel e uno, conquanto social e à mercê de quem o apanhasse

a vida é assim... ou não, a vida são nadas, e quando o nada se torna INTEIRO, então teremos vivido e não voltaremos, porque não se pode voltar aonde nada aconteceu, porque nada terá acontecido.