quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Um dia tudo muda

Disseste-me: "Um dia tudo muda" e eu disse "Isso é difícil, o tempo é curto".
Mas tu sabias do que falavas. E eu não acreditei ou não quis crer.
Nesse dia um turbilhão de nada aconteceu.
Enquanto esperava por ti nada tinha que fazer.
Despreocupado porque a hora estava marcada sentei-me algures no parapeito do rio e olhei o vazio.
Tinha um livro na mala e um bolo no bolso. Mas nem fome de letras nem vontade de comer me apareceu. Continuei inerte e sereno no vazio da água brilhante ao reflexo da luz fugidia por entre nuvens passageiras.
Olhei para o relógio sem perguntar as horas. Li decor as horas e estava quase.
Despreocupado continuei. Tu irias estacionar o carro perto e ligar-me a dizer o teu paradeiro. Eu caminha até ti algo nervoso, como sempre e desde sempre e tu fazias que não me vias pelo canto do olho. À distância medida pelo vidro tu irias levantar a cabeça e sorrir apenas porque sim.
A hora chegou e tu não telefonaste. Durante 3 minutos pensei que era o trânsito.
Passado os 3 minutos liguei-te e não atendeste.
Preocupei-me por ti e por mim.
Corri e acorri aos locais do costume e tu não estavas.
O sangue que tinha na cara começou a esfriar e o suor começou a suar.
Voltei ao meu poiso, agora em brasas. O calor que me transmitia era tal que não me sentava sossegado.
Impaciente senti umas mãos quentes e calmas no meu pescoço e uma risada infantil.
Eras tu que pela primeira vez me encontraste e não esperaste que eu fosse ao teu encontro.
Hoje, ao contrário do beijo quente sentaste-te a meu lado ainda mais ardente.
O calor do assento tornou-se tépido e o meu braço direito quis sentir o novo calor, o teu calor.

Olhei-te, o sorriso medido do vidro soergueu-se sem muralhas e tiraste o meu braço do teu ombro. Fizeste-o descansar na pedra fria do parapeito sobre o rio e descansaste a tua mão sobre o mindinho dela.

Um dia tudo muda, e hoje foi o dia.

Hoje tudo ficou na mesma mas tudo mudou.
Os teus olhos assim mo disseram, sem palavras. Apenas o brilhar de estrelas no brilhozinho dos olhos.
Afinal de contas... A nossa vida é feita de pequenos nadas. . .´

"Tudo é relativo, salvo o infinito." - Duque de Lévis

http://www.youtube.com/watch?v=qq9gKIqBO_E

sábado, 6 de agosto de 2011

Jesus Antunes

Vou-vos contar a minha história.
Na verdade não é a minha história, é antes um pedaço da minha história.
Na realidade são apenas pedaços despegados da minha vivência.
Eu nasci um dia antes do dia marcado. Nasci marcado de homem que viria a ser.
A partir desse mesmo dia fui perseguido.
Perseguido por ditadores com medo de perderem o poder e com eles algo que eles tomaram deles, como nós tomamos por nosso a roupa que trazemos ou o corte de cabelo que nos fazem.
Os meus pais esconderam-me por entre lendas e ovelhas.
Gente rica, mas gentia, acorreu até mim. Depositavam as suas esperanças e riquezas em mim. Depois deles gente pobre me queria ver e adorar. Despojaram-se das suas pobrezas por mim, sem que eu alguma vez lhe tivesse pedido algo.
Durante largos anos da minha vida nada mais se soube. Nem o onde, nem o com quem, nem o quê. Eu digo-vos: também eu não sei, porque de tanto ouvir e ver a minha história eu já nem sei quem fui ou quem sou.
Aos 30 anos (diz-se, mas o dizer anda pelas ruas, já dizia o meu avô David), recomeçaram-me a escrever.
Como destino que me foi traçado pelo meu Pai e não pelo meu pai, continuei a ser persguido quase tanto como ouvido e adorado.
A medo fui-me treinando com os ditadores que outrora me perseguiram e soube aprender a falar às gentes.
Falei em feiras, em santuários, em montes (brilhantemente, deixem que vos diga, e com honestidade). Mandei levantar paralíticos e mortos renascer.
Quando os senhores me acharam muito mais que uma pedra no sapato, fui acusado de algo que nem sei bem o quê e traído (ou salvo? ou amado?) por um dos meus cavaleiros da távola redonda, um dos meus doze deuses do Olimpo, uma das minhas doze deídades do Antigo Egipto.
Três dias estava morto na cruz. "O Redentor, o Messias", diziam eles a meus pés, "está morto".
Antes da minha hora berrei, como um bezerro que não descobre a mãe entre as outras vacas: "Pai, porque me abandonas?" .O meu sacrifício deu-se então(sim, um sacrifício mortal, morri sacrificado, e as gentes aceitam isso enquanto eu o lutei. Fui apenas mais um cordeiro, no fundo e desde o início).
Hoje, passadas duas noites e cerca de dois mil anos da minha morte eu sei a razão do teu abandono Pai: o meu sacrifício não foi suficiente, e tu, cobarde, na tua omnipotência e grandiosidade sabia-lo e abandonaste-me.
Eu, cordeiro de deus, morri ingloriamente. Eu, O cordeiro de deus, morri em vão.

A minha história é essa.
Hoje, depois da ressurreição, sou o Antunes da repartição das finanças de Degolados, e salvo o país da bancarrota. Vão esforço o do Messias.

"Seja no que for, apenas poderemos ser julgados pelos nossos pares." - Balzac

http://www.youtube.com/watch?v=B6g7SWqbPzk&feature=related

sexta-feira, 5 de agosto de 2011

Rei Sadim

A minha mãe disse-me ao dia de vida que eu tinha um dom. Não que eu me recorde de tal ditame, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
A minha mãe morreu 3 dias após o meu parto.
A minha mãe tinha razão. Também ela tinha o seu dom. O seu dom era o da adivinhação. Não que eu o recorde, porque o meu dom não é o da memória, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
Hoje, de cada vez que oiço isto, mando cortar-lhe logo a língua.
A minha mãe morreu porque sabia o meu dom. Tinha-o adivinhado. E eu perdoo-a por tal, também eu mal me suporto.
O meu dom é a pestilência, o azedume, a podridão, todos num só. E por estes, a fome e mudez de muita gente.
Eu nasci ao contrário, com os pés virados para a lua e a cabeça para o ventre.
enquanto crescia, de luvas na mão, corria de costas e ainda hoje ando ao revés.
As palavras escrevo-as da esquerda para a direita, enquanto a minha arabidade me obriga ao inverso.
O meu nome foi escolhido às cegas disso.
Desde o primeiro dia em que falei e disse "Rei", que tudo o que toco se estraga ou morre.
Disse Rei e abracei o meu pai. Não que eu me recorde de tal ditame, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
Repeti "Rei" e acrescentei balbuciando "Midas", e o meu abraço fez o meu pai frio e roxo. Os olhos tornaram-se cristal negro.
Gritou-se "rei morto, Rei posto", Não que eu me recorde de tal ditame, apenas mo contaram mais tarde, por vezes incontáveis, tanto que hoje não o suporto ouvir.
Eu fui assim rei. eu sou assim rei. o Rei Sadim, aquele que mata o vivo em que toca e que estraga a comida em que toca.
É este o meu dom, tornar o mundo um local enjoado e enojado.
É este o meu dom, não sentir o toque da minha rainha.
É este o meu dom, não sentir o pelo dos meus cães.
É este o meu dom, não sentir com as mãos, e ser cego mesmo vendo.
É este o meu fado, um mouro encantado, que pouco tem de encanto.
É este o meu fado, ser Midas ao contrário

"Nem tudo o que reluz é ouro"

http://www.youtube.com/watch?v=AhxVx8fskMo