quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Desenganos II

2.
Acabou enfim a viagem para a capital.
Não mais iria esquecer aquele cheiro a podre, a mijo, a vício e o pior, a maldade violenta.
Gostou do sol, que é para todos, mas odiou tudo o resto.
Ofereceu nesse dia o casamento à sua esposa e um fatinho novo ao seu filho.
Disse que os iria proteger de tudo e que um dia iriam ser felizes algures num sítio calmo e sem ódio.
Incapaz, garantiu um trabalho numa oficina. Pagavam-lhe pouco para fazer pouco. Ele sabia o nome de algumas ferramentas e pouco mais.
Mas aqui já não era o Esquisito. Era o Silva. Era apenas mais um Silva que estava por Lisboa.
Ficava contente por alguém o conhecer pelo nome. Por outro lado era um nome anónimo. Ninguém aqui iria fazer caso de que ele fora um dos diferentes na sua serra natal. Ninguém aqui queria sequer saber de onde é que ele vinha. Só queriam que lhe passasse a chave de fendas.
Passado cerca de um ano a sua mulher de sempre tinha arranjado trabalho nas limpezas da cantina da escola que o filho frequentava.

Aqui o trabalho não é duro, há mais comida, mais luz, mas menos sol. Tudo se faz entre quatro paredes. Os patrões não se conhecem, mas o dinheiro aparece sempre contado ao dia certo.
A comida arranja-se das prateleiras, já sem raízes e sem poeira. Tudo é brilhante e bonito.
As casas não têm velas, usa-se lâmpadas a noite toda, pois não há medo de o gerador falhar. As casas, mais altas, têm entranhas eléctricas, algumas a sofrer de disenteria e outros males.
As notícias, que outrora se sabiam por quatro ou cinco estações de telefonia lá na e da terra, aqui escorrem de todos os lados, até numas línguas estrangeiras nas bancas dos quiosques.
Há sítios maravilhosos na capital, mas esses é onde se passeiam os ricos e o Silva e a sua família tinham de poupar para qualquer dia se mudarem e não podiam (nem deviam) pagar o dobro por uma bica só porque era numa artéria mais larga.
Entretanto, no meio de tanta coisa nova e de tanta gente, a Sra Silva tornou a engravidar. Um bebé, que alegria. Um bebé, mais um peso, mais um obstáculo para a felicidade.
Ainda possuíam alguma roupa do mais velho, por isso aí poupou-se um pouco para as fraldas, mas de resto, o consumo forçosamente aumentou, assim como os ordenados, e a renda, e os produtos e as dificuldades.
O Silva estava farto. Estava farto das unhas sujas de óleo e do cheiro a amoníaco da sua esposa. Estava farto das boas notas do mais velho e das fraldas a corar na corda. Estava farto dos eléctricos cheios de gente que nem um bom dia lhe davam.
Estava farto de nunca estar bem fosse onde fosse.
Quando entrou para a carreira que o levava à oficina remexeu nos bolsos à procura de trocos e lembrou-se.
Lembrou-se do mealheiro que tinha feito sem ninguém saber. Nem a mulher nem bancos. Estava escondido algures que só ele sabia e dava facilmente para ajudar às despesas de uns bons seis meses. Sem sequer ter de trabalhar.
Sorriu.

À noite, na altura depois do deitar e antes de ir para a cama, despediu-se do mais velho com um beijo na cabeça, da mulher com um beijo na face e do mais pequeno com uma festinha na mão. Disse que estava cansado e que os amava todos e seguiu para o quarto com imagens religiosas e fotografias de entes mortos ou esquecidos.
Adormeceu num ápice e nem deu conta da Sra Silva se ter deitado.
Quando acordou ainda era de dia e nem se lembrou do que tinha sonhado, se era que tinha sonhado de todo.
Acordou o mais velho, disse-lhe umas palavras ao ouvido e este levantou-se. Saíram de casa ainda com as ramelas nos olhos.
Cada um com a sua mala, dois pães e um chouriço. Água para matar a sede
Em cima da mesa tinha deixado um envelope com dinheiro e com umas simples e rudes palavras.
"Amo-te Mulher. Jamais irei encontrar alguém como tu e juro-te pela minha honra que nunca te irei trair.
Deixo-te este dinheiro para que te orientes e lembra ao Manuel que o pai dele sempre o amará.
Sempre teu, Esquisito Silva. Até que deus queira."
A carta provocou choro, irra, amor, ódio, ternura. Metade da vida dela tinha abalado e tinha abalado a outra metade. Força mulher, passa por cima que a vida é isto mesmo, pensou.
Foi ao quarto do mais velho e achou a cama vazia e ainda quente. Também lá estava um escrito "Amo-te Mãe. A gente vê-se."
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