terça-feira, 29 de novembro de 2011

caso bicudo

Tenho a cabeça latejar-me.
Não me recordo bem como, mas dói-me que se farta.
Puxo pela cabeça sem me magoar ainda mais e recordo... recordo que dormi bem e que dormi mais do que clinicamente aconselhado.
O vinho que deveria ter bebido ontem ficou na garrafa e o concerto de hard-rock adiado.
Porque me late a cabeça?
A filmografia densa e pesada que tenho por ver não saiu da caixa e o frio que podia sentir ainda está a uns meses de chegar.
A cabeça late-me.
A gripe que podia ter-me sido contagiada ainda nem às aves chegou e as aves ainda nem chegaram vindas do Sul. A hipotensão perdeu-se nos caminhos de um gordo bife e de um divinal toucinho do céu bebido por entre golos de água.
A cabeça continua a latejar.
Não me recordo de acordar. Aliás, nem sequer me recordo de adormecer.
Mas... mas agora estou acordado. O vento que me afasta as madeixas louras é real, e o cheiro a verde também é real.
O latejar da minha cabeça é real. Apareceu por alguma razão e não desaparece.
A roupa que visto é real, não é um sonhou nem um devaneio.
Mas porque raio me dói a cabeça?
Reparo que o verde que cheiro é o da relva, elevada a tamanho exorbitante.
Estou tombado.
Procuro levantar-me. A custo porém, porque a cabeça é mais pesada que uma cabeça normal.
Olho em redor. Não me lembro de adormecer nem de acordar. Reconheço o sítio. É o meu quintal.
A cabeça ainda lateja. Muito.
Amparando-me a amigáveis móveis e outros apetrechos subo os três degraus que me afastam da cozinha.
O fogão está com os restos do bife por cima e ao lado do lavatório, como sempre.
O frigorífico continua branco e as três cadeiras (que deviam ser quatro, mas continuo sem namorada e com casais amigos) estão ainda de castanho peito feito.
A mesa de quatro bicos está ainda bicada, mas noto alguma coisa num deles.
Uma cor brilhante mas escura transparece pela luz.
Aproximo-me e um cheiro levemente férreo invade-me a dor de cabeça e diminui-a.
É sangue. É sangue do meu sangue. Sangue que não se aguentou e que caiu pela mesa abaixo, esparramou-se pelo chão da cozinha e a passos continuou até ao quintal.
Faço o percurso e vejo que o meu sangue me seguiu.
Dou passos assustados em procura de um espelho.
Encontro-me tropegamente com a casa de banho e olho-me.
Descubro um rombo na minha testa e dele uma nódoa de sangue.
Mas ao invés de o sangue estar seco ou a correr-me face abaixo, o sangue sobe-me lentamente pelo lado esquerdo da cara, a custo, como um ciclista nos alpes, e entra-me ferida a dentro.
Com ele leva também o que encontrou no caminho.
Formigas, lixo, terra, restos e pelos de animais fazem agora parte da minha corrente sanguínea.
Vejo-os endireitarem-se antes de desaparecerem na minha cabeça.
A minha late cada vez menos. Como se a dor fosse causa do sangue perdido.
Será que... Só pode...
Não me lembro de adormecer porque morri... Porque morri e renasci.
Na morte Nada, na vida Sangue.
Da morte bicuda de mesa à vida suja de sangue.
Na morte dor, na vida... lamentos a definhar