quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Amor Über Alles

- Eu já te disse que te amo?
- Como?
- Eu amo-te. Amo-te como todos os clichés do amor anunciam. Não durmo a pensar em ti, e quando durmo sonho contigo, as nossas mãos a dar-se e a unir-se num só corpo. Ou melhor, a extensão de ti em mim e vice-versa.
Amo-te da forma em que o coração tem síncopes e parece que o peito se torna pequeno por ele bater por ti.
Deixa-me acabar por favor.
Eu amo-te como o poeta que se queima sem se queimar, como a cortiça nasce do sobreiro ou como o mar se enrola na areia. Amo-te chachadamente, ternurentamente, depressivamente, obsessivamente. Amo-te como as flores amam o sol ou os morcegos amam a noite e o mundo ao contrário. Amo-te como uma criança gosta de perguntar coisas ou uma velha gosta de dizer no meu tempo é que era. Amo-te como a Inquisição amava a fogueira ou como um milionário ama o seu dinheiro. Amo-te mais que tudo e que todos e amo-te como nenhuma outra coisa.
A minha vida só faz sentido contigo, e contigo a meu lado. Só tu tens o poder de me mandar calar e eu obedecer. Só tu poderás um dia pedir que me mate, e o farei por amor a ti.
No fundo, amo-te.
- Eu gosto de ti, a sério, mas não te amo. E além do mais eu sou casada!
- Eras. Matei o teu marido. Agora já me podes amar?

segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

Noites Escuras


Ela está farta das luzes laranjas da noite. Prefere as brancas, frias, e não estas cores quentes.

Prefere até ter apenas o luar nas noites da lua cheia. Umas 3 / 4 noites sem luz artificial nas cidades.

Nessas noites ela poderia ver as estrelas com mais clareza, a silhueta da cidade com mais definição.

Numa noite dessas poderia até passar incógnita nas pessoas que se evitam na penumbra. Mais, nessas noites não tinha que cumprimentar nem ser simpática. Seria só mais uma gata parda entre parda gente.

O pior de uma noite assim era poder morrer às mãos de um pervertido social, ou de alguma mulher que a reconhecesse.

A noite sem luzes é a noite de folga de Laurinda, a prostituta.

Chocolates e Marmelada


Manhã de domingo.

Eu ainda meio acordado e meio rameloso visto a roupa que a minha mãe me deixou aos pés da cama.
Camisa aos quadrados, calças de bombazine, pullover verde e sapatos novos. Pretos.
Não me posso esquecer de usar fio e pulseira de ouro.
A mãe chama-me ao longe, mas de perto o suficiente para eu a ouvir e sentir medo de levar um açoite.
Despacho-me e como uma sandes de marmelada que ela me preparou. O pão é de ontem mas a marmelada é muito docinha.
Dá-me leite quente, mas eu prefiro o chocolate que a minha avó me há-de dar no caminho.
O meu pai já está todo aperaltado e eu quero usar um relógio de bolso e um chapéu de aba quando for do tamanho dele.
Saímos os três a pé e o meu irmão de cinco meses ao colo.

Hoje é dia de festa da igreja. Vem cá o Senhor Bispo dar a Bíblia aos moços que têm mais um ano que eu. Alguns deles nem sabem escrever o nome deles.
Acho que fazem isto por ser bonito e é assim que deve de ser.
Não percebo, mas pronto.
Para o ano sou eu a estar vestido com uma opa branca e uma cruz de madeira ao peito e a fazer força para não me rir.
Deve ser por esta altura e o Senhor Bispo há-de vir bendizer a Bíblia a gente.
Eu já sei ler hoje, por isso para o ano sei ler melhor. E nesse dia hei-de mostrar ao Bispo que sei ler!

E depois vou perguntar ao Senhor Bispo que se deus perdoa tudo e todos e é amor, porque é que há Inferno e porque é há um menino na minha escola que diz que deus se chama Alá e que não o deixa comer sandes de chouriço.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Livre à Condição

A avaliar pelas estrelas devem ser umas três da manhã.
Acordei com os rins a chicotear-me as costas.
Passo pela casa de banho, abro a porta da rua e mijo 30 metros à frente, ao relento e para o tronco de um pinheiro vagabundo.
Imagino a imagem desta cena: um gajo que tinha tanto de careca como de grisalho, levemente anafado, de pijama, de madrugada, a mijar no meio do pinhal, mas em frente a uma moradia.
Certamente iria passar umas horinhas ao posto da GNR lá da vila, e teria de explicar porque é que não usei a minha sanita, não tendo sequer ingerido qualquer tipo de álcool naquela noite.
Eu responderia que mijei na rua porque me apeteceu, porque poupava uma descarga de água, porque aquela urina não ia matar a árvore, porque o relento é saudável, porque gosto da noite, sei lá mais o quê. Diria que sou livre, num país livre e democrático, ARRE!
E iam-me responder: pois é, é livre, mas só mais ou menos. Urinar na via pública é um atentado ou pudor, punido por lei, Sr B.
Saio da imaginação, dou três sacudidelas e vagarosos passos até ao portão.
Já fiz este percurso umas boas milenas de vezes, mas desta vez sinto-me oprimido.
Se há 5 minutos me senti livre de ir de pijama à rua, no meio de uma noite amena de primavera, agora regresso a pensar que sou como uma garrafa vazia ao largo no mar: posso apanhar as vagas que quiser para onde quiser, mas haverá sempre um dia em que serei lixo.

Sapatos Negros

O seu cheiro quente e perfumado, a sua voz baixa e sensual, o seu corpo torneado e sem adornos, as suas mãos longilíneas e delicadas, os seus sapatos caros e negros.
A ausência de roupa no seu corpo e a dizer-me amo-te e eu a responder coisa nenhuma a não ser beijos e as minhas mãos a quererem sentir a sua pele por inteiro, sem se cansarem mas sempre em vão.
Sabia que se viria sentar no meu colo, com o cabelo a tapar-lhe parte do rosto, deixando-lhe apenas um olho castanho escuro à mostra.
O meu corpo musculado em certa medida contra o outro, pele contra pele, volúpia contra volúpia.
Havíamos de acordar em concha. Eu primeiro, como sempre.
Eu a levantar-me, a fazer o pequeno almoço e a pensar levá-lo à cama, e nessa altura a paixão da noite anterior acorda, sorri e diz-me: "és o homem da minha vida André"
E eu digo: "E tu o da minha Alexandre".

Abraçamo-nos pela primeira vez com a luz do dia e eu roubo um gomo de laranja do tabuleiro.

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

Amante em Playback


Ela só queria saber como era um bastidor da vista da cadeira do apresentador, e ter alguém como ela a penteá-la, a dar-lhe mimo e a mentir-lhe acerca de quão bela estava no hoje daquele dia.
Queria um dia saber como era falar para a câmara antes de receber o retoque de maquilhagem, dado por alguém como ela, durante o intervalo ou uma VT.
Quando saía do trabalho, por vezes já noite tardia, tinha os pés doridos e inchados e na mão uma mala cúbica.
Quando chegava a casa, sonhava acordada no banho e mexia os lábios sem imitir som como se fizesse playback agarrada ao chuveiro.
Tinha deixado o marido por ser roliço e contabilista, mas dizia que era por já não sentir a chama.
Era amante da nova coqueluche do canal, mas só às segundas-feiras, no resto dos dias era amiga de uma suburbana como ela e solitária na maior parte das noites.
Um dia teve a sua oportunidade: o seu amante arranjou-lhe uma entrevista no programa da manhã, para falar sobre a vida de maquilhadora de TV, e, como bónus, podia cantar uma canção a seu gosto, já que cantava bem.

Nesse dia maquilhou-se em casa, sozinha.
Nesse dia apanhou o metro até ao canal de cabeça levantada.
Nesse dia maquilhou os apresentadores como sempre.
Nesse dia foi maquilhada para a TV como nunca.
Nesse dia a entrevista correu bem, riu muito, nervosamente.
Nesse dia cantou mal, pior que no duche.
Nesse dia foi a chacota das redes sociais e dos programas cor-de-rosa
No dia seguinte ninguém soube dela, nem deram pela sua falta.

Menos o amante.

segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Morto no Sofá

Disse-me uma amiga que teve uma experiência de quase morte que viu o corpo estatelado na estrada, duas pessoas a saírem apressadamente do carro e transeuntes com as mãos na cabeça.

Descreveu-me como se a alma se tivesse separado do corpo, e por não ter peso, ou talvez por pesar apenas 21 gramas, esvoaçava livre 4 metros acima da realidade.

“Era uma sensação de liberdade mas de tristeza permanente”, referiu.

E foi exactamente assim que me senti há pouco.

O corpo a tornar-se leve e a esvoaçar que nem as pétalas de um dente de leão e ao mesmo tempo eu a ver o meu mesmo corpo. Havia uma qualquer ligação ao corpo lá em baixo, inconsciente e disforme no sofá.

Vi a minha televisão. Passava MTV.

Vi a estante dos livros. Quase vazia.

Vi a porta da cozinha e o cortinado a esvoaçar como eu, mas preso ao varão, como se não se conseguisse suicidar nunca.

Não me conseguia conduzir, apenas captava o que o acaso da alma me mostrava.

Era tão bom estar ali em cima. Calmo. Sossegado. Esquecido. Virtual.

Por outro lado era tão mau estar ali em baixo. Morto. Sossegado. Esquecido. Real.

Vi a meu lado um saquinho com pedrinhas azuis e um tubo esquisito de vidro.

“PORRA!”, disse em espírito.

Voltei a fumar meth!

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Isqueiros e Amor

Quando dei por mim estava de perna traçada a beber um sereno conhaque francês e a olhar a desinteressante avenida.
Desinteressante porque o que observava era mais do mesmo: pessoas, carros e pessoas dentro de carros e sacos nas mãos das pessoas.
Já tanta vez me tinha divertido a ver as pessoas e a imaginar a sua vida e pensamentos, as suas agruras e predicados, as suas maquilhagens e rugas.
Hoje não era esse o dia. Hoje tinha-me dedicado ao lado à soturnidade e embasbacamento.
Quando dei por mim estava esquecido porque estava assim, e agora que voltei a mim lembrei-me: a rapariga que trabalhava no escritório de advogados abaixo da minha casa de rico tinha sido despedida. Logo hoje que a ia convidar para… para… nem sei bem.
Mas decerto que seria hoje que ia falar com ela, dizer-lhe que decorara os seus horários pelo seu perfume, que sabia o seu nome por ter mentido descomunalmente ao segurança do prédio e mais nada.
Corria o risco de parecer um stalker, um doidinho daqueles que se vêm nos filmes que mostram o corpo nu e pálido a transeuntes, mas não me importava. Ela saberia enfim que olhava para ela e que me deixava interessado.
Mas hoje, tinha de ser hoje, ela foi despedida. E eu nem sabia a razão, e talvez não viesse a saber nunca.
Por isto hoje não estava interessado nas pessoas que passam e repassam. Por isto hoje o tabaco me sabia a ar puro e fazia-me sentir um alívio vazio.
Do nada senti o corpo a retesar-se e o sangue a afluir-me à cabeça, quente e desorientador.
Era o teu perfume e o som do teu tacão.
Olhei em volta, pressenti-te.
Reconheci-te.
Estavas ao meu lado.
Procuravas o teu isqueiro na mala e ofereço-te o meu.
O resto foram estórias.

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Das Vidas Pequenas

Ouvi no outro dia um escritor dizer que a ignorância é amiga da felicidade. Na altura até me fez sentido.
Pensei rapidamente nas pessoas em meu redor, naquelas que eu considerava mais ignorantes, e notei que isso era verdade.
Eles, por desconhecimento, não sabem o que é uma secret agenda, pensam que tudo o que passa nas notícias é verdade e que as melhores coisas que se pode fazer em social são falar de bola, mal dos políticos, queixar-se do trabalho e pouco mais.
De facto, comparativamente a mim a ignorância deles até me deixa algo invejoso.
A vida deles é mais leve, pensam em menos assuntos e de certeza que se aplicam mais e melhor nos interesses deles que eu nos meus 23 ofícios da cabeça.
Em contrapartida eles, que na minha arrogância, sabem menos das coisas do mundo que eu, e que deveriam ser felizes porque despreocupados, não o são.
Olho para eles e estão sempre rezingões. Aliás o que acima disse confirma-o. Só se queixam e reclamam, não aproveitam o sol ou a lua.
Os jantares fora servem para gozar uns com os outros ou para gozar com os da mesa ao lado. O humor nunca é uma coisa inocente ou geral, é sempre pessoal e agressivo.
Lembro-me do 1984 e de a esperança estar na plebe. A início também concordei, mas a prazo não. E o prazo é-o estes ignorantes.
Não há esperança na plebe, há esperança que a plebe eduque uma geração com um grande ponto de interrogação na testa e não um ponto de exclamação.
Até lá regozijemo-nos com os programas de opinião e os reality-shows e não ladremos enquanto a caravana e o rolo compressor passar.

terça-feira, 27 de setembro de 2016

Carros de Pressa

Chove muito à hora da sesta.
Se fosse verão e se fosse fim de semana mesmo agora dormia um bocadinho, assim com as pingas d'água a baterem primeiro nas telhas e depois no chão.
Mas agora é Inverno e é quarta-feira, e no trabalho não posso dormir sesta. Quer dizer, não é que não possa, mas depois a minha patroa também me pode despedir, não é assim?
Trabalho na oficina geral de uma empresa de táxis, e trabalho não falta, mas faltam peças e a gente (eu, outro e um aprendiz) fazemos o que podemos com arames e restos dos carros velhos.
Os cabrões dos taxistas estão sempre a pressionar, e quanto mais chateiam, mais me atraso, que eu não volto a cara a nenhum despique. Depois arrependo-me.
Arrependo-me porque só tenho oito horas para trabalhar e uma vida para viver, e acabo a passar estas oitos horas a perder a vida e a discutir.
De resto, não me queixo de nada. O ordenado chega para comida e umas férias na terra da mulher e para gasolina. Ainda não tenho dores nas costas, mas a rótula que escavaquei a jogar à bola quando era novo já acusa a chuva.
Gostava era de ser mais instruído e perceber tudo o que dizem nas notícias. É que eu imagino que o Eng. Almeida, o deputado, fala muito bem, mas às vezes me engana. Mas é que o homem fala mesmo bem. Emprega palavras bonitas e estrangeiras. Gosto muito de o ouvir.
Parece assim um Júlio Isidro da política. Ainda deve chegar a Primeiro-Ministro. Eu cá hei-de votar nele.
Nessa altura já eu vou estar de reforma, se os que estão no poleiro agora ma derem, e vou ouvir a chuva a bater nas telhas e depois no chão, e a falar mal dos políticos e a chamar o carro de praça para me levarem ao hospital para me verem as pontadas nas costas.
Mas hoje não há sesta para ninguém!

sexta-feira, 23 de setembro de 2016

Caminho de Terra


A luz batia-me tão forte na cara que eu mal via o caminho.

O dia tinha acabado de nascer e o sol, ainda baixo e alvo, inundava-me a vista e cegava-me a condução.

Conduzia por intuição numa estrada que o meu carro já conhecia de cor.

Atrás deixava metros e metros empoeirados de caminhos de cabra que provavelmente de cabras só tivessem tido o nome.

Seguia a caminho da horta do Alfredo, um velhote esperto, esquivo e velho. Devia ter 130 anos, mas espírito de 80.

Ainda era ele que cavava a terra com uma enxada já gasta de torrões e pedra.

Eu ia comprar verduras, temperos e alguns legumes para levar para a aldeia. A gente lá tinha-se começado a desleixar desde que a luz chegou às ruas. Começamo-nos a deitar mais tarde porque ficamos mais tempo na rua a desdizer e desdenhar. E depois as hortas secam-se.

Para mim foi uma oportunidade. Com o meu charrueco inglês era mais rápido que as mulas dos meus vizinhos e a alface não chegava tão esmigalhada e mole.

Enfim cheguei perto do Alfredo. Parecia que me esperava, com o queixo apoiado na enxada e no pulso um cordelinho fraco a fazer de trela do seu cão Ginete, que de ginete tinha o nome, como o caminho de cabras.
 
- Bom dia!
- Bom dia Alfredo, estás bom?
- Cá vou andando. Olha, hoje não apanhei tomates. Ontem não os reguei e hoje tenho-os murchos.
- Estás sempre a brincar. Então pronto, levo o que tiveres rijo.
- Vá, a encomenda está ali no casebre. Vai lá busca-la.
- Obrigadinho. Pago-te já para não andar a parar no caminho.
- Qualquer dia, para não andares a parar no caminho ainda vais ter tudo rijo na mercearia do Judeu.
- É o progresso.

E lá me fui eu embora, a queimar gasolina e a rezar por alcatrão para o bem das molas do meu carro.
 
Hoje ainda se deve ter salada para o almoço.

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Amor de Embarque

Mais um aeroporto, mais uma cidade. Talvez uma repetida.
Mais pessoas de um lado para o outro.
As solitárias chamam-me a atenção.
Sempre que partilho o meu tempo de espera com outra almas solitárias no cais de embarque ponho-me a imaginar uma linda história de amor. Nem sempre regular.
Hoje escolhi uma mulher grande, tatuada e com ar de má.
Imagino esta massa de gente sisuda e pintada num enorme abrir de abraço, num sorriso maior e num aperto feliz e íntimo. Dentro da amarra braçal um rapaz-homem de camisa azul clara, mangas arregaçadas e delgado de corpo. Os seus olhos brilham como só de vez em quando. Ele tem na mão uma mala daquelas que os arquitectos usam e uma cidade cosmopolita como pano de fundo.
Decido que ela trabalha em moda, e que é ultra-talentosa, mas como não é forma de moda apenas chegou a costureira de topo. Ele deve ser arquitecto, tem um nome composto mas não tem cabeça disso. Decidiu ir viver para a cidade que eu vou visitar em breve, mas deixou metade da vida aqui, mesmo que os pais dele não aceitem.
Lutam dificilmente contra o afastamento, e é isso que torna tão belo o abraço apaixonado criado por mim.
Vejo-os a chamar um táxi de mãos dadas e tão apertadas que os nós dos dedos estão brancos.
Devem seguir para o apartamento dele nos subúrbios. Melhor, vão para a baixa boémia da cidade, passar 2 noites numa casa partilhada e num quarto semi-exíguo.
O cheiro do quarto passa de ambientador caro para sexo apaixonado e carícias ao acordar.
No domingo ela volta, ele fica e sorriem à despedida com juras de amor eterno.
Quase sinto ciúmes da minha imaginação, até que ao anunciar altifalante do embarque eu volto a mim e à minha vida e recordo que te tenho, e que me fazes mais feliz do que este casal alguma vez será. Que é por ti e pelas tuas imperfeições matutinas que o meu coração faz um batimento extra por minuto. Que é por ti e pelos teu perfume natural que os meus olhos se fecham pelo menos três vezes num dia.
Que é por ti que eu existo e que invento histórias de amor nas pessoas dos outros, só para que todos eles tenham algo parecido ao que nós temos.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Vida Vazia

         Tu eras daquelas gajas perfeitas. Cabelo louro, bem tratado. Lábios naturalmente carnudos e uns olhos verdes esmeralda. Tinhas a pele levemente morena e um pescoço esguio.
As tuas mamas, ui, as tuas mamas. Grandes, mas não em demasia, debaixo dos tops e camisolas decotadas e das camisas desabotoadas. Tinhas uma cintura fina e um rabo perfeito. Alguns de nós ainda desconfiávamos que era das calças, da magia da ganga, até te vermos na praia com os teus bikinis.
Tinhas as pernas magras mas um pouco tonificadas.
Eras tudo aquilo que qualquer gajo sonhava comer, mas que só alguns podiam.
Moravas num bairro do subúrbio e trabalhavas como secretária num escritório de advogados. Mas na verdade nenhum homem queria muito saber disso. Estávamos mais interessados em pagar-te um jantar e levar-te para o quarto. O nosso ou o de um hotel mais ou menos fino, para alimentarmos o nosso ego e te mostrarmos como troféu aos outros. O destino era uma foda brutal. Ou a esperança disso.
Um dia, mais tarde, os outros também te passaram a cobiçar. É que se antes eras mais que boa, com a tua roupa de pouca qualidade e as calças compradas nos centro comerciais, agora, com os vestidos e jóias falsas que os teus amantes te ofereciam, elevaste a fasquia. Passaste de vaca de advogado, jornalista ou do engenheiro para passares a ser cobiça de sócios de escritórios, directores de informação ou de um outro político promíscuo. E pouco te faltava para seres a puta dos patrões.
Tu adoravas. Presentes aqui a cair a jorro. Sentias-te importante, poderosa. Sabias que nas horas que estes gajos estavam contigo, as mulheres estavam em casa acreditando em horas extraordinárias e a ver novela.
Eras presença nos jantares de gente importante, que comprava roupa em Nova Iorque, e por medida. Ouvias pequenos segredos de Estado que não compreendias, nem querias porque te faltava aquela mala na toilette, e isso era o que mais te interessava.
Entediavaste quando te levavam à ópera, porque tu querias era uma discoteca.
Tu até podias ser daquelas gajas boas e invejosas, mas não eras. Tinhas o teu grupo de amigos, que te tinham em boa conta, simpática, divertida. Alguns dos teus amigos admiravam-se por tu não teres ainda namorado, ou namorada. E tu havias de responder sempre que não tinhas tempo, que trabalhavas muito, e que gostavas mais de compras e de sair do que de homens.
Eras assim, levavas uma vida conto de fadas para adultos. Para um novo casaco, um novo hotel, para uma prestação da casa, uma queca.
Ias indo feliz, consumista, inserida na esfera da influência que não tinhas noção que existia. Sentias-te importante mas não te gabavas. Sabias que o Dr S… decidia sobre a taxa de juros, mas tu nem sabias o que era o juro. O Eng. D… queria a estrada ali mas tu nem sabias onde o ali ficava.
Mas o teu tempo passou. As veias das mãos começam a dar um ar da sua graça. A cara, que foi outrora queimada pelo sol, começa a mostrar as suas manchas. Tens pequenos papos debaixo dos olhos e rugas na testa. Começam-te a aparecer as primeiras brancas.
Estás-te a reduzir à meia idade, mas infeliz, porque até aqui não te deste conta que o tempo passava.
Os gordos que te alimentaram e te comeram agora cagam-se para ti.
Agora, à beirinha dos 40 anos vês-te sem gajos que te paguem um copo ou as jóias. Os que contigo se deitaram agora desprezam-te. Passam por ti nos novos carros. Alguns deles tu ainda conheces os bancos sujos de orgasmos. E se algum deles te vir na rua, faz que não te conhece.
E na realidade já não te reconhece. As tuas nádegas firmes já não existem. As mamas falsas e tesas que te deram estão deslocadas do teu corpo flácido e gasto.
Agora, que na raiz dos teu cabelos estão a aparecer brancas e que os teus amigos não entendem a tua depressão, tu apercebeste-te de uma coisa:
O teu coração está vazio.

terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

Um Novo na Multidão

Já na rua notei que toda a gente tinha o olhar esquisito. Parecia que a sombra que por vezes a fronte provoca fosse hoje mais forte em toda a gente. Em toda a gente.
E parecia que essa sombra os cegava, mas de uma maneira esquisita.
As pessoas passavam por mim, desviavam-se de mim, mas sentia-se uma aura de indiferença, uma neutralidade.
Não houve uma troca de olhares, por mais que eu tentasse trocar o meu.
O dia estava cinzento, algo chuvoso. Tudo para onde eu olhava tinha esse tom grisalho.
Olhei mais atentamente e as roupas eram todas praticamente iguais: os homens de sobretudo cinzento, sapatos finos mas já gastos, fatos escuros e gravatas monotom; as mulheres usavam sapatos de cunha, roupa de escriturária e transportavam malas na mão direita. Ninguém tinha jeans a não ser eu e um mendigo. Mas as deste estavam rasgadas e sujas.
Desço para o metro e as filas são pouco agitadas e silenciosas. Toda a gente seguia uma ordem imaginária e todos tinham o dinheiro certo.
Pensei que estava num sonho ou pesadelo, e na tentativa de despertar mandei-me contra o multibanco. O resultado foi uma dor no ombro.
Sentei-me na primeira carruagem do metro, de costas para o caminho. Os meus concidadãos estavam a ler livros com a capa protegida e não consegui deslindar se liam Zola ou a colecção Arlequim. Alguns deles mexiam no telemóvel ou no tablet. Ninguém falava ou levantava a cabeça.
Um minuto antes de ser anunciada a estação, um punhado de gente levantava-se e alinhava-se para a saída.
Por azar ou sorte a minha estação era a terminal e tive de ver todo aqueles repetitivo espectáculo.
Tudo isto me parecia desconcertante. Esta ordem crua e distante. Vazia de sensações, de sons, de vida.
E mais estranho me pareceu por eu, em 40 anos de vida nunca ter reparado nisto. Não achei que o mundo tivesse mudado literalmente da noite para o dia. Ainda assim segui o meu percurso como sempre.
Quando o metro parou lembrei-me que tinha deixado a roupa espalhada no chão da sala do meu T2 e que por cansaço de qualquer origem adormeci pesadamente.
Esbugalhei os olhos e sorri: Ontem não vi o jornal da noite.

sexta-feira, 5 de fevereiro de 2016

A Vida de cada Um

Casa. A vida.
Entrar pela porta. Janela fechada.
Cortinado, Sol, roupa a secar, roupa dobrada e cheirosa, guarda-fatos e factos, abarrotar, amarrotar.
Chão, tapete, sofá, TV, controlo TV, aparelhagem, router, telemóvel, carregador de telemóvel. Tomada, extensão, frigorífico, extensão da vida.
Frigorífico, comida, fogão, café, WC. Sanita, banheira, quiçá bidé. Espelho, champu, mousse, máscara, laca, amaciador, trangas, tantas trangas.
Amaciador da roupa, roupa na máquina. Dinheiro, Bolas!! gancho do cabelo, gancho? pente, escova, fio, anel anel anel anel anel, fio fio fio fio, pulseira vezes 14.
36 pratos, 23 copos, 7 já partiram, 10 individuais, talheres multi-étnicos.
Viagens, fotos, computador, redes sociais. Emojis e famosos. Aceitação.
Pessoas: solidão.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2016

Um Quadro Muito Conhecido.

A história que me ocupa a mente sei-a desde que ma contaram, há uns 40 anos.
Eu andava na rua a apanhar o lixo com o meu pai. Tínhamos chegado a esta terra grande uns meses antes.
Naquela altura imunda e feliz, com fome mas com a barriga cheia de pessoas e amor, falava-se muito. Pelo menos em minha casa. E muitas histórias se contavam. Umas falsas, a maioria, e outras verdadeiras, raras.
A que mais me marcou foi sem dúvida a do menino mudo que desenhava tudo.
Chamou-se Cláudio, António, Roman, Ludwig, Óscar ou Sofia. Dependia do dia e de quem a contava.
Bem, este menino mudo não terá nunca aprendido a escrever, e tão pouco linguagem gestual. Parece que a família dele era pobre e ninguém sabia ler. Não havia lápis a carvão na casa dele, apesar de todos trabalharem nas minas.
Todos os dias ele via a casa em algazarra, mas nada podia ouvir nem dizer. Percebia sentimentos. chorava ou ria conforme os outros. Começou a perceber ler gestos e olhares. Mas isto não lhe era suficiente.
Certo dia descobriu na mala roubada de um pintor várias cores e pincéis.
Rapidamente percebeu para que serviam todo aquele arco-íris.
Começou a desenhar em casa. Começou a desenhar a casa. Sem papel desenhou nas ruínas da Guerra.
O traço, sem preto, era perfeito. Desenhou a casa e todos nela com grande detalhe.
Quando todos chegaram a casa, depois do apito da mina, viram notável obra.
Choraram, cumprimentaram, beijaram e sabe-se lá mais o quê o menino mudo.
Do fundo da carteira que seria para o pão do mês resgataram uma parte para tintas, pincel e papel.
Desde este dia tudo o que o menino quisesse expressar, fazia-o no papel. E com a perfeição de um mestre do retrato.
Rapidamente tal chegou aos ouvidos dos mais poderosos e todos quiseram conhecer o seu trabalho.
Em poucos anos o menino mudo era rico, gordo mas não burguês. Vestiu a família, albergou-a em casa grande. Livrou-os de trabalhos pesados.
Um dia certa nobre figura, talvez menos egoísta que as outras, pediu-lhe que fizesse um auto retrato.
E foi um retrato tão belo que hoje em todo o mundo o conhecem: O Menino da Lágrima

terça-feira, 5 de janeiro de 2016

Invernia

Dias de chuva obrigam-me a recordar torradas, café com leite, rádio à luz das velas. A infância. Os mortos.
O de hoje não é diferente, mas é.
Enquanto sorvo o ar quente e cinzento pela piteira do cachimbo recordo-me desse tempo. Estou quase a tentar-me emocionar, mas não consigo.
Se o sorriso for uma emoção, então nego o que escrevi acima.
Sorrio ao som e cheiro dessas memórias.
A minha avó dizia-me que o cheiro a terra molhada não era digno se de chamar. Trazia a morte. E também não podia falar alto quando trovejava. Era deus a falar. Pena não o ter percebido.
Pois bem, hoje tenho a terra do quintal molhada e deus está a falar, e continuo a não o entender.
Afinal a minha avó tinha razão. A terra molhada chama a morte.
Vejo-a à minha frente. Magra, esguia, escura.
Na mão direita a gadanha e na esquerda ossos e obscuridade. O capuz longilíneo
Quase tento tremer de medo, mas não consigo.
Se o sorriso resultar do medo, então sou um medricas.
Se fosse há uns anos irritava-me com isto tudo! Revoltava-me estas modernices.
Hoje, já avô, sorrio e faço-me de assustado ao ver o meu neto de 8 anos vestir-se de morte.
E invejoso.