quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Luz Suspiro

O suor corre-me nas veias e transpiro sangue. O passo parado que tomo deixa-me exausto. Expiro a cada segundo que passa, com a salinidade por dentro e o sangue por fora.
A minha tez não a vejo, é substutuída por um tom vermelho vivo, vivo como eu o deixarei de ser em breve.
A horrificiência sinto-a. Os pulsos limpam-me a testa, a saliva torna rosa a minha transpiração absurda.
Sinto a respiração pesada, ofegante, rara. Escasseia-me a capacidade pulmonar, que por ora oxida água salgada. A grande circulação anda a tensões lentas para me desvanecer. As pálpebras sanguíneas pesam-me enquanto ando estaticamente. Sinto-me vacilante a cada passo que dou sentado no banco.
Não sei como aqui parei, neste banco solitário no meio do deserto pérfido, de tons terra seca e inféril. A única vida que presencio é a minha a extinguir-se. O céu é azul e apenas azul. Sei que assim é apesar de o ver rasgado de vermelho desfocado que me tapa a visão física.
É agora... a última golfada de ar aproxima-se da boca através da traqueia salgada. Dói-me o peito, não sinto palpitação.
Abro a boca involutariamente, maquinalmente. Está aqui o Fim, a centelhas de segundo. O último suspiro, o último pulsar.
Da boca morro. O sopro que me resta é um fio de luz branco, puro, casto.
Mas... como o sei se morri?
O que me sai pela boca não é respiração, sou eu! Vejo o meu berço, vejo a minha roca, a minha bicicleta, a minha mochila, a minha namorada, a minha mulher, o meu filho, e enfim, vejo todos os meus pensamentos a correrem, todos tão presentes como se tivessem sido acabados de pensar.
Percebo que tudo aquilo que pensei é quem sou e não a pessoa que fiz de mim.

Percebo que estou na luz que me sai da boca. Abro os olhos. Vejo o sangue na cara ainda, mas não dói a respirar. Sinto o peito mais forte que nunca. Unhas frágeis apertam-se na palma da minha mão. Luzes fortes e brancas, respirações fortes e palavras entredentes ferem-me os ouvidos e choro.
Choro alto para afogar todos os sons em volta.
Vejo cortarem-me um bocado de mim...

Uma segunda oportunidade.

http://www.youtube.com/watch?v=LuqEbRzy_t8


"da luz apenas fogem os escaravelhos, os ladrões e os ignorantes" - Paolo Mantegazza

quarta-feira, 13 de abril de 2011

caminhos de Roma

Hoje acordei rameloso e sorridente. O Sol não se via ainda, mas a sua alvez já se fazia notar.
Levantei-me com algum custo. O torpor de uma noite curta invadia-me e ocupava-me. O teu cheiro que se exalava da cama quente do teu corpo embebedava-me a razão.
Consegui então levantar-me e tu deste um leve suspiro, um rorronar felino, como que a chamar por mim, mas eu não anui.
Na casa de banho tirava as ramelas mas não consegui lavar o sorriso, ficou-me colado à cara como uma lapa. Não me esforcei mais, se era assim que a minha cara se queria mostrar, era assim que eu me apresentaria nesse dia!
Vesti-me a correr, voltei à cama quente e perfumada por ti. O meu espaço já estava ocupado. Ocupado pela tua cabeça e pelo teu braço direito. Os teus cinco sentidos em cima das minhas últimas migalhas.
Vou-te beijar, pensei. Não o fiz. Vou-te fazer uma festinha. Não o fiz. Vou sorrir, pensei. Não o fiz. O sorriso já estava em mim, já era teu.
Mandreei e apenas mantive o sorriso. Por vezes, quanto mais simples melhor.

Saí de casa. Ao abrir a porta ouvi as molas da cama. Eras tu a mexeres-te. Tentei sorrir, mas ele já lá estava. Fechei-te a porta mansamente e saí acompanhado. Acompanhado pelo sorriso e por ti, na minha cabeça, na minha pele, na palma da minha mão.

Tinha-me esquecido do carro aberto. E então? Ninguém rouba carros abertos. Entrei, pus o carro a trabalhar. Fui embora. Segui caminho à direita quando deveria ter seguido à esquerda. Troquei as voltas na primeira saída da estrada e estacionei onde não podia.
Cheguei ao destino que me estava destinado.
Ao sair do carro soube-o. Tu continuavas na cama a meu lado e eu a sorrir para ti

"Enquanto o poço não seca, não sabemos dar valor à água." - Thomas Fuller

http://www.youtube.com/watch?v=9cQloro92xA

domingo, 3 de abril de 2011

A grande mentira

Havia um boliço na terra.
As mãos agitavam-se ansiosas, como se não se quisessem largar mutuamente, por medo ou por amor. Os olhos olhavam em redor a procurando algo que a memória se poderia ter esquecido, um relógio de bolso, um lenço, um alfinete, mas na verdade nada faltava.
Os homens vestiam os seus melhores fatos, já coçados nos cotovelos. As mulheres compunham-se com as melhores combinações e o brio do ouro em volta do pescoço e dos dedos.
As senhoras de lenços rendados na cabeça iam espreitando ao postigo. Os homens com os seus chapéus panamá debruados a negro iam-se agrupando às esquinas. Todos olhavam para o relógio, apesar de todos saberem que a hora estava marcada e que o sino na torre da igreja os chamaria.
Dentro da igreja lá estava ele, primorosa e pobremente vestido. Camisa branca, lívida, sobre um casaco preto, com um laço antigo a compor. As calças da cor do casaco e os sapatos da cor da gravata. Seria ele o mais afastado da porta da igreja, não fosse o padre, que a encimava do seu pedestal. Vestes brancas e estola e casula púrpura compunham o seu paramento.
A igreja ia-se enchendo vagarosamente, mesmo antes do sino ter chamado. As mulheres enxugavam as lágrimas de emoção a um lenço rendado com o lenço da cabeça.
O burburinho intensificava-se e os homens que já apareciam prostravam-se à porta a louvá-lo, àquele que agora estava ali de junto do padre.
O sino tocou.
Já toda a gente sabia o que aí vinha, mas ninguém queria, ninguém podia faltar ao chamamento.

Tinha começado o funeral.


"A vida já é curta, mas nós tornamo-la ainda mais curta, desperdiçando tempo." - Victor Hugo