sexta-feira, 17 de julho de 2020

EntreParedes

Desde que comprámos a casa nova velha da década de 1960, desde que restabelecemos os contractos e de cada vez que esperamos que a nova torneira prateada no dê água quente ouvimos os tubos a iniciar na parede do quartocozinha uma leve batida musical, que vai crescendo até ser uma forte batida industrial e se vai esvaindo numa leve batida de chuva das goteiras.

Estranhámos e amedrontámo-nos com o som mecânico da parede. Pensámos que talvez se tratasse de uma fuga de água, mas a parede nunca apareceu tingida de lama e ferrugem na cal. Perguntámos a entendidos que nos aliviaram dizendo "São pareces velhas, e o cano soltou-se com o tempo. Isto é o som da água quente a dilatar os canos." e isso serviu-nos na altura.

A semana passada resolvemos mudar os canos. Pó, azulejo, palavrões e dinheiro entre o quarto e a cozinha. Quando o dia acabou a cozinha estava numa de brilho cerâmico e o quarto estava a ficar ferido no tijolo, violentado por martelos e escopro.

Quando acabamos, suados, doridos e ocres escuros de pó e de tijolo, pestejanámos várias vezes. Não por sono mas por incredulidade.
Durante uns minutos pensamos que havia fungos microscópicos com capacidades psicotrópicas, mas não.
De dentro do golpe aberto a golpes de martelo apareceu-se-nos um anão. Um anão mirrado, encarquilhado e seco como a pele antiga de uma cobra. Emperrado não conseguia sair da parede. Eu tirei-o e a minha mulher e o meu sogro foram buscar água e fruta.


Ele aceitou e num estranho português correcto disse: Estava a ver que nunca mais me tiravam daqui.
Quisemos saber como tinha ele sobrevivido. Disse A parede deixa entrar ar e eu tenho pulmões anões. Para comida roía a ferrugem dos canos, e como sou bem regrado e não me mexo muito, três raspadelas chegavam para me alimentar por meia dúzia de dias. A água bebia quando quisesse, era só alargar os canos um pouco que ela vertia. O pior era as fezes, que vinham sempre ferrosas, mas que como não como muito não cheiram mal por aí além.

Perguntamos como é que ele tinha ido ali parar e parece que foi coisa da PIDE.

Quando acabou a fruta, perguntou onde era a janela. Disse que apesar de cego pela luz queria ar puro.
Indicamos-lhe o caminho, de mão nossa nas costas outrora emparedadas.
Quando lá chegou, abriu as asas e voou.

A ferida na parede ficou para sarar amanhã.

terça-feira, 21 de abril de 2020

Tocar para Sentir


A inexistência.

A inexistência de conversa, a inexistência de planos, a inexistência de carícias, a inexistência de paixão a inexistência de um futuro.

Era assim que este casal vivia o dia a dia. Sem filhos e com empregos estáveis não havia muito mais pelo que lutar. A casa era arrendada ao tio dela a preço de liquidação total numa loja chinesa.
A comida era comprada fora ou enlatada. Cozinhada apenas quando uma das sogras cozinhava. A televisão passava séries para os dois, desporto para ele e canais do cor de rosa para ela. É cliché, mas é verdade, não me julguem, apenas transcrevo o que imagino.

Ele ia ao ginásio e ela também, mas a ginásio diferentes. Só jantavam juntos ao sábado, porque à sexta ele tinha poker e ela unhas e pelos do sovaco para tratar.

Nos jantares de sábado falavam, mas pouco. Está insonso Está bom É enjoativo É perfeito Nunca comi nada assim Foi caro Não comas já deixa tirar foto Acho que vou pedir um whisky Então eu peço amarguinha. O regresso era feito em silêncio no carro ou em silêncio para o sofá\cama.
(Já) Não se tocavam a não ser num acto nojento e mundano: Ela gostava de lhe espremer os pontos negros.

Ele, que ainda a amava, sentia-se pronto para a vida quando a pele se lhe doía agudamente por entre as unhas dela. Ela só via pus e sujidade a ser limpa. Ele ainda se entesava, mas envergonhava-se porque era um porco, dizia ela. Ela já não o amava, mas como não gostava de ler nem de o foder, espremia-o.

Com a pele aqui e ali avermelhada e com as mãos desinfectadas adormeciam por entre um beijo de boa noite.

Ele ainda se sentia pronto para a vida quando adormecia, e acordava já meio mortificado. Ela estava sempre distante e vazia, como se fosse sempre o oceano onde a vista o deixa de alcançar. Ele desejava sempre ter a pele oleosa e ela desejava sempre ser feliz na câmara do telemóvel.

Uma noite, uma certa noite, ele tinha uma borbulha no peito, junto ao coração.

Ela enojou-se, mas encorajou-se. Ele curvou-se com a dor para depois aproveitar o toque da mão dela, a força do seu antebraço por todo o peito, o peito dela a roçar-lhe a barriga, a anca dela a tocar a sua. Por momentos pensou que ela o podia beijar ali mesmo, e ele a abraçá-la com força, jovial e normal.

A dor foi tanta que morreu ali. Foi tanta pressão no seu peito que o seu peito parou.

Morreu ali, de excesso de amor.