terça-feira, 17 de abril de 2018

Uma Luz que se Apaga

Andavam pela mão dada pelo Mercadinho dos Clérigos.
Não procuravam nada em particular, apenas passear a sua paixão e encontrar alguma eventual pechincha.
Ambos gostavam de música. No mês passado tinham comprado um gira-discos dos antigos. Um Technics sem agulha e com metade da etiqueta partida. Na verdade era um “Nics”.
Tinham alguns vinis dos pais: Demis Roussos, Roberto Carlos, Julio Iglesias e Zeca Afonso, entre outros de qualidade mais duvidosa. E ABBA, muitos.
Pararam ao pé de uma banca com discos em canastras de plástico e começaram a revolver. Encontraram a sua pechincha: The Queen is Dead dos The Smiths. Não tinha a capa em boas condições, mas o vinil parecia não ter danos. E pelo valor que pediram valia a pena o risco.
Ela carregou o vinil na mão esquerda. Ocupava a mão direita com a mão esquerda dele e ele mantinha a sua mão direita no bolso, ocupada a rodopiar uma caixinha de veludo com um anel de noivado.
Caminharam até ao fim da feira, no sentido da casa que partilhavam há quase um ano, ali perto da Escola Gomes Teixeira.
Quando chegaram à Praça da Galiza, mas ainda no passeio ele começou a estancar o passo, a puxa-la pela mão. Ela perguntava Que se passa amor? E ele, enfim confiante ajoelhou a perna direita, tirou a caixinha negra do bolso e começou: Cristiana, sei que não foi aqui que nos conhecemos, mas foi aqui que me apaixonei por ti. Não ensaiei grande coisa, e estou a reparar que estamos no passeio e não na relva, mas não aguentava mais: Queres casar comigo?
Ela engoliu em seco. Tremeu das mãos. Começou a chorar. Disse um Sim envergonhado. Ele disse Não percebi. Queres casar comigo? Ela disse sim, Sim, SIM! e como que assustada pelo sim começou a recuar. A dar pequenos passos para trás. Chorava intensamente, como se a sua cara fosse uma floresta tropical na altura das monções.
Ele sorriu, tanto de feliz como de nervoso como de amante como de alívio. Mas logo a suas feições começaram a mudar para preocupado, assustado, medroso.
Num acto quase de instituto correu para Cristiana, com a velocidade que o nervoso quente lhe permitia e empurrou violentamente Cristiana.
Cristiana desequilibrou-se e acabou por cair uns metros ainda mais atrás. Não percebeu de imediato o que tinha acontecido.
Quando recuperou o tacto e reconheceu o ambiente e a rua em sua volta, reconheceu também que ele tinha acabado de ser atropelado por um autocarro.
O seu corpo jazia na estrada, 4-5 metros à frente do autocarro. Havia já um pequeno ajuntamento de pessoas. Um pequeno laivo de sangue saía-lhe do nariz. O peito não subia nem descia. Ele não respirava.
As lágrimas de Cristiana quase voltaram. No chão, a meio caminho entre ele e ela estava o vinil que tinham comprado. Na mão direita dele continuava a caixinha, agora fechada.
Meio trôpega da montanha russa de emoções levantou-se, pegou no disco, foi ter com ele.
Deitou a sua cabeça no seu peito ainda quente e inerte, retirou da caixinha o anel e colocou-o.
Servia na perfeição.
Sem chorar disse:
"And if a double-decker bus
Crashes into us
To die by your side
Is such a heavenly way to die"