quinta-feira, 26 de maio de 2011

Gozo

- Ena pá, “ganda” sol!
Estava um diz soberbo, brilhante, ameno, muito bom para passeios, e era isso mesmo que Artur fazia. Ia deambulando por entre as árvores do jardim, verdes com a relva fresca e macia que cobria o chão por debaixo dos seus pés
Muita gente passeava. Todos estavam felizes da vida, gozavam aquele dia magnífico de Primavera de um céu azul esplendoroso.
Os velhos brincavam com os netos e com os filhos que tinham saído da prisão do escritório para gozar o bom da vida. Ali estavam todas as gerações da família a socializar, a falar, a gozar.
Mais à frente um bando de jovens, todos maltrapilhos, sujos e com má cara, seguravam, à margem deste invólucro, um pequeno cachorro carinhosamente e ajudavam sempre aquele que aparecesse a seu lado com um pequeno problema.
Ao lado namorados namoravam. Trocavam juras de amor e diziam-se coisas tontas que só o amor permite.
Havia em todo o seu redor um burburinho saudável, os pardais cantavam, as pessoas andavam a pé ou de bicicleta, cochichando vida alheia. Os bebés riam e as mães trocavam palavras. Não existiam agentes da autoridade porque tudo era ordem.
Mas eis que se ouvem vidros a serem estilhaçados e uma sirene.
Artur olhou em redor e aquele magnífico dia foi-se tornando mais escuro e cada vez mais parecido com um quarto de um lar de idosos e os sons lá fora mais pareciam os de um assalto prosseguido das sereias dos carros policiais.
Artur, do alto dos 80 anos cheios de experiência, notou: Acordei de novo… puta de vida!

"De noite os defeitos se ocultam." - Ovídio

http://www.youtube.com/watch?v=wl0XLHy7kes&feature=BFa&list=PL7F0CF39298D0F91A&index=11

segunda-feira, 23 de maio de 2011

a noite encontro-me

A noite caiu magoando-me. A sua negra estrela atinge-me como um raio e derrota-me.
O último raio de Sol que aparecia relembrou-me o cisne e o seu canto. As trevas da noite são o meu fim, a minha inexistência diária.
A minha vida ganho-a diurnamente, dando sorrisos e rebuçados a quem dentro da caixa. O silêncio vinga-me a fome, mas a noite silenciosa vinga-me o silêncio.
Eu vivo das pessoas, vivo do burburinho, vivo dos risos e dos olhares que não vejo nas minhas costas.
A minha roupa muda todos os dias, renovo-me a cada dia que amanhece, como se fosse um tira-olhos em cada dia que passa sobre o meu pedestal.
A noite traz de volta a minha condição.
O dia, glorioso, luminoso, mesmo com chuva, alimenta-me, enaltece a minha fisionomia, o meu ar, ora encovado ora bonacheirão. O dia realça a minha maquilhagem, o meu ser renovado e reformado. O dia mostra as minhas capacidades, a minha argúcia, o meu talento, o meu engenho, até que o nefasto pôr-do-sol apaga o que durante o dia construi.
Deixo de ser quem até ali fui. Deixam os outros de me ver como eu era. Deixo de saber como estou. A noite destrói o meu trabalho, a minha arte, o meu-ganha pão. A noite é a minha morte quotidiana.
Aninha-me no peito a réstea de esperança do amanhã, porque sei que o amanhã terá o seu dia e o seu sol, a sua luz e as suas sombras, porque sei que amanhã me pintarei, me vestirei para ser o que sei fazer, que é encarnar em alguém grande, imortal. EU SOU IMORTAL com e no dia, nada me apagará, a não ser a noite.
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite mostra-me o que eu esqueço.
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite ilumina-me a razão.
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite recorda-me que eu... que eu...
A noite, a puta da noite, a desgraçada da noite sou eu
À noite, na noite recordo-me que eu nunca sou eu, que eu sou apenas uma pessoa que se pára e os outros admiram.
À noite, na notie choro porque eu sou um homem-estátua, e toda a minha vida é a vida daqueles que represento.
À noite, na noite sei que o homem-estátua que sou vive sozinho todo o dia, que os sorrisos que me alimentam sorriem para o Júlio César ou para o Lincoln.
À noite, na noite mortifico-me e espero pelo dia que aí vem.
Sou uma estátua de mim, à noite, na noite

"A escravidão é o estado natural do género humano, até que se realiza a libertação." - Xavier Maistre

http://www.youtube.com/watch?v=QWs8DaWbK8w

sábado, 7 de maio de 2011

hoje é o dia!

Hoje disseram-me "Levanta-te, acorda, limpa-me essas ramelas da cara e faz-te homem!"
Hoje fiz o que me mandaram, até certo ponto. Não me tornei homem, tornei-me antes quem sou. Se me fizesse homem seria mais um, seria igual a tantos outros que por aí andam, aos caídos, semelhante ao seu semelhante por assim o quererem ser.
Hoje levantei-me depois de me ter acordado, antes de a ordem me ter sido dada.
As ramelas limpei-as com Sol e tomei um banho canto de pássaros. Em vez de me fazer homem sorri infantilmente, ou pelo menos gosto de pensar que sim.
Hoje, depois de me ter levantado e ter limpo, sujei as mãos na lama e rasguei as calças no silvado.
Hoje, depois de me ter sujado e rasgado, fui quem sou.
Ao meu passo ululante os da minha geração censuravam-me com o olhar e com a mente toldada por rugas de homem crescido que lhe ordenaram um dia ser e eles anuiram ser.
Hoje, enquanto dava os meus pulinhos reparei numa saia aos folhos e nuns ténis de pano. Fiz-me parado ali. Alcovitei a saia e os ténis. Uma blusa azul, simples e uns óculos de massa apareciam por cima de uma pele morena e esfolada nos cotovelos. Nas mãos sujas um ramo de flores silvestres arrancadas por força à Terra Mãe.
As rugas em volta dos seus olhos denunciavam que nascera há já bastante luas. Provavelmente tantas como eu terei visto nascer.
Hoje ao ver os ténis de pano mudei o rumo dos pulos e comecei a dar passos seguros na sua direcção. Ela sentiu-me, virou-se e sorriu-me infantilmente, ou pelo menos eu assim o senti.
Hoje ao retribuir o sorriso recebi as flores silvestres e retribui com amoras pingando cor-de-sangue doce e fresco.
Hoje sou quem sou e gosto. Hoje é quem é e gosta. Hoje somos quem somos e gostamos.
Os outros? os outros são homens e mulheres iguais a tantos outros...

http://www.youtube.com/watch?v=xSd4evT8Nw8

"Sufoca-se o espírito da criança com conhecimentos inúteis." - Voltaire