quinta-feira, 24 de março de 2011

S... de oliveira

Encostado estava ele, Pedro. Oliveira era o seu encosto. Uma oliveira velhinha, dobrada sobre o peso do tempo que passou ao sol, à chuva, ao frio e ao calor. Poucos se encostavam a ela, mas muitos a vararam em tempos, quando ela era nova, vigorosa, fértil.
Era assim que Pedro imaginava o seu encosto. Amava-a como quem ama o seu corpo. A oliveira era parte de si. As suas costas tinham cada casca prestes a soltar-se marcada.
Eles eram uma só pessoa, uma só vida, feitas de muitas vidas passadas.
Agora, Pedro, perto dos 30 anos, barba aparada e franja rodada ao vento, a barriga a salientar-se por debaixo de uma formosa camisola, tocava ao de leve a oliveira, parte do seu ser, e sorria. Virou-se para a ver enquanto a sentia, e recordou cada uma dos momentos passados até aí. Poderia ter chorado, mas em vez disso sorriu, porque sabia que esta era a altura.
Soergueu-se e com o sol a brilhar-lhe os olhos e a aragem a abanar os ramos soprou um estridente assobio. A este som a porta do seu carro parado à distância obedeceu, e abriu-se.
Saiu de lá uma figura uma figura feminina. Pedro voltou costas ao vulto que se aproximava e sussurrou a um buraco oco e escuro da oliveira: "É ela, é ela a S..."

"só se pode vencer a natureza obedecendo-lhe" - Francis Bacon

http://www.youtube.com/watch?v=yQoOohOsyyE

terça-feira, 22 de março de 2011

pequeno almoço

Hoje acordei dorido. As rugas vermelhas e falsas do meu corpo encontram espelho nas rugas do sofá. Uma réstea de sol nascente invade-me a casa.
Hoje acordei no sofá dorido. A cada movimento meu o sofá reclama, chia, como se se contorcesse para escapar à dor, à dor dele que é a minha.
Hoje acordei dorido no sofá que chia. A chiadeira propaga-se pela casa. Os meus ossos estalam à medida que me afasto do sofá. Dói-me o corpo e a porta da casa de banho chia dolorosamente. Faz-me zunir os ouvidos, que neste estado chegam perto da torneira que zune à passagem da água.
Hoje acordei dorido no sofá dorido que chia. A água chega-me fria à pele, que se arrepia enquanto me transforma numa laranja descolorada e vincada. Os vincos que teimam em não desaparecer, como uma tatuagem a tinta de curta duração, para me lembrar da dor com que acordei.
Hoje acordei enrugado no sofé dorido que chia. A laranja em descolorada, vincada e agora molhada em que me tornei começa a apodrecer. E em menos de nada a minha pele e o meu sumo ácido começam a espalhar-se pelo chão. Vejo o meu único cabelo verde e grosso escorregar-me pela casca que sou. O cheiro a fruta podre impregna-me a casa de banho, eu sei-o.
Hoje acordei a chiar nas dores do sofá. No sítio onde tinha o olho esquerdo saem-me caroços e pedaços de cascarrão. Sinto o sofá a chiar, a porta a chiar, a torneira a zunir.
Hoje desfiz-me sem dor no chão da casa de banho. Levanto-me apressadamente do sofá onde adormeci a ver um filme e tenho uma vontade doentia de um sumo de laranja à janela.


"Um sonhador é aquele que só ao luar descobre o seu caminho e que, como punição, apercebe a aurora antes dos outros." - Oscar Wilde

http://www.youtube.com/watch?v=yCKs6uFn-u8

segunda-feira, 21 de março de 2011

brisa

Alentejo. Alto Alentejo. O céu está mais azul que nunca, nem uma nuvem a perturbar a calma alentejana. Uma ligeira brisa vinda do Sul aquecia ainda mais a seara dourada pelo sol e pelo perdurar dos tempos. Um pardal encalmado procura abrigar-se do calor por entre o trigo, enquanto que um trigueirão molha o bico num charco quase seco.
Uma criança aflita corre ao sol abrasador, esbaforida por entre o restolho onde tudo, aparentemente está calmo, corre como se estivesse à beira do fim, sem ligar ao ambiente em seu redor. O velho “Joquim” que se levantou agora da sesta está cheio de sede assim como as suas rugas estão cheias de trabalho, de trabalho de sol-a-sol, sem sequer ter um simples dia de descanso, mesmo nos dias santos.
O Tó do “Joquim da Uva” lá continua a sua tarefa cansativa de ir procurar água para o cansado avô. Corre como se tivesse asas nos pés. Ficam felizes aqueles que o vêm na tasca da pobre e velha aldeia de brandos costumes a ajudar o seu velho e pobre avô. Consideram-no “um rapaz daqueles que já não há”.
Finalmente chega. Põe em cima do balcão, ao qual mal chega, um cobrezito que mal chega para uma garrafa de água das pequenas, mas que amável senhor Isidoro troca por uma garrafa de litro e meio e um punhado de guloseimas.
Então os habituais clientes da tasca do “Cantinho” sorriem ao ver o Tó agradecer e desaparecer num ápice, esforçando-se para agradar a quem lhe é agradável
A criança toma o mesmo caminho mas em sentido contrário, passando por searas, charcos, trigueirões e pardais, por pedras perenes e por pequenos répteis que se arrastam.
Chega ao pequeno monte. O avô espera-o sentado numa cadeira de pau, encostado a uma mesa velha de madeira escura, com uma telefonia a passar no negro da casa um cante alentejano. O “Joquim da Uva” está feliz por o rever, aquele petiz esforçado por ser trabalhador, louvado por ser agradável.
O velho mata a sede, o jovem cumpre o dever e os pássaros espreitam a leve brisa fresca de uma triste nortada.

"Antes ser um homem da sociedade, sou-o da natureza." Marquês de Sade

http://www.youtube.com/watch?v=5SWIPlgciSs

sábado, 12 de março de 2011

uma manhã de Inverno

Saí de casa atrasado, mas ainda assim não me apressei.
O elevador esperava por mim no meu piso, o botão do piso 0 foi pulsado. O elevador deselevou-se pesadamente por meio de carretos e rodas dentadas.
Desci o lanço de escadas que me precipita sobre a rua. O automatismo da porta funcionou e um estalido ecoou.
Saí à rua e havia pessoas. Poucas pessoas. Solitárias na rua como eu, e pouco me interessa se são solitárias em casa ou nos carros ou em qualquer outro sítio.
Passo por duas senhoras que aguardam o seu turno no multibanco. As suas mãos não param, estão nervosas. A escravatura da moda obriga-as vilmente a usarem roupa desajustada de Verão no Inverno (pergunto: não tinha sido abolida a escravatura?).
Deixo para trás esta gente e dobro a esquina, desço as escadas de acesso ao metropolitano e dou de caras com caras fechadas, olhos ramelosos, ouvidos fechados por auriculares, punhos cerrados que carregam malas cheias de futilidades ordinárias. O seu passo é apressado, como se desejassem voltar ao seu ritmo enfadonhamente repetitivo.
Ninguém repara em mim enquanto eu reparo no resto. Ali o que tudo importa são os sons que não ouvem. O aviso de obliteração do bilhete, o aviso de fecho de portas, o tilintar dos trocos na máquina das franquias de bordo, os baques dos sapatos no soalho.
As pessoas continuam surdas e escravas. As palas invísiveis que usam nos olhos permitem-lhes não me ver. Encontro-me a fazer um slalom perante elas para que não esbarrem comigo.
O túnel findou, subo à rua, ébrio da cegueira social dos demais.
O sol torna-me a invadir os poros e o oxigénio marado envenena-me os pulmões.
Olho para o relógio e estou atrasado... atrasado para a escravatura.

"A escravidão é o estado natural do género humano" - Xavier Maistre

http://www.youtube.com/watch?v=7e3-Vg1gIx0