terça-feira, 22 de março de 2011

pequeno almoço

Hoje acordei dorido. As rugas vermelhas e falsas do meu corpo encontram espelho nas rugas do sofá. Uma réstea de sol nascente invade-me a casa.
Hoje acordei no sofá dorido. A cada movimento meu o sofá reclama, chia, como se se contorcesse para escapar à dor, à dor dele que é a minha.
Hoje acordei dorido no sofá que chia. A chiadeira propaga-se pela casa. Os meus ossos estalam à medida que me afasto do sofá. Dói-me o corpo e a porta da casa de banho chia dolorosamente. Faz-me zunir os ouvidos, que neste estado chegam perto da torneira que zune à passagem da água.
Hoje acordei dorido no sofá dorido que chia. A água chega-me fria à pele, que se arrepia enquanto me transforma numa laranja descolorada e vincada. Os vincos que teimam em não desaparecer, como uma tatuagem a tinta de curta duração, para me lembrar da dor com que acordei.
Hoje acordei enrugado no sofé dorido que chia. A laranja em descolorada, vincada e agora molhada em que me tornei começa a apodrecer. E em menos de nada a minha pele e o meu sumo ácido começam a espalhar-se pelo chão. Vejo o meu único cabelo verde e grosso escorregar-me pela casca que sou. O cheiro a fruta podre impregna-me a casa de banho, eu sei-o.
Hoje acordei a chiar nas dores do sofá. No sítio onde tinha o olho esquerdo saem-me caroços e pedaços de cascarrão. Sinto o sofá a chiar, a porta a chiar, a torneira a zunir.
Hoje desfiz-me sem dor no chão da casa de banho. Levanto-me apressadamente do sofá onde adormeci a ver um filme e tenho uma vontade doentia de um sumo de laranja à janela.


"Um sonhador é aquele que só ao luar descobre o seu caminho e que, como punição, apercebe a aurora antes dos outros." - Oscar Wilde

http://www.youtube.com/watch?v=yCKs6uFn-u8

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