quarta-feira, 23 de agosto de 2017

A Rapariga do Kimono

Não, hoje não vos falo de uma Inês perdida num autocarro de uma qualquer cidade, nem vos falo de uma sede imensa e inexplicável por sangue e pathos.
Hoje falo-vos apenas da rapariga do kimono, sem nome mais próprio que este.
Ela é alguém que se pavoneia (mas não arrogantemente) em qualquer sítio sem que tu notes sempre, em qualquer rua de qualquer cidade.
Vê coisas onde eu vejo outras, mas provavelmente mais belas.
Sorri, dança mas ainda não sei se chora em qualquer lado.
A rapariga do kimono é assim, como tantas outras raparigas que por ti passam, mas a cabeça dela está cheia de magia, de piadas, de dúvidas e de saber.
Saber geral, saber particular, saber de não saber ou saber de imaginar.
Passa por ti outra vez e se a fisgares a sorrir e a saltitar consegues imaginá-la a ouvir música sentimentalona, como Sinnerman da Nina, mas provavelmente estará a ouvir metal, descrições de pesadelos mas com o cabelo a bambolear feliz.
Acho que ela tem esta ideia de si, mas não tenho a certeza.
Acho que ela vive bem, vive de bem com a vida, mesmo com as unhas pintadas de azul bebé a acompanhar casacos de cabedal.
Só ainda não sabe confiar no meu braço para se apoiar caso o chão molhado a teime em derrubar.

quinta-feira, 17 de agosto de 2017

Chamava-se História, mas chama-se Inês

Todos os dias eu faço o mesmo percurso até à faculdade.
Saio do prédio, apanho o autocarro à minha hora, já que o autocarro está sempre atrasado.
Tenho os fones ligados ao iPod que está ligado à melhor playlist de sempre, a minha!
No entanto no último mês e pouco algo mudou, e eu sei que foi. Foi ela.
Ela é uma rapariga que deve ter a minha idade, ouve música por um iPod igual ao meu, mas cor de rosa. O meu é preto.
Já cruzamos olhares, sorrisos e eu já tentei descobrir o livro que ela lia.
Hoje tudo mudou. Quando eu entrei havia um lugar livre ao lado dela, que ocupei.
Tremia por todo o lado e olhava para o lado apenas pelo canto do olho. Conseguia ver o sol a iluminar-lhe a ponta do nariz e um bocadinho de cabelo. E acho que conseguia vê-la a mordiscar o lábio. Acho...
A determinada altura ela chateou-se com o iPod e resmungou "bela altura para acabar a bateria" e eu, que hoje não tinha a música ligada, perguntei "desculpe?"
- Foi o meu mp3, ficou sem bateria.
- Que estava a ouvir, posso perguntar?
- Que estava? Podes-me tratar por tu, a não ser que tenhas uma educação queque e sejas mega educado e tenhas desde já um lugar assegurado numa grande empresa que eu nunca ouvi falar.
E estava a ouvir Greatful Dead, conheces?
- Bem, ok, vou-te tratar por tu. Conheço mas não tenho. Tenho Led Zeppellin e Jimmy Hendrix. Se quiseres partilhamos fones.
- Pode ser, boa ideia. És um miúdo fixe, e eu muita parva por usar miúdo e fixe numa frase em 2017.
- Ahahahah. Tens algum álbum que gostes em particular?
- Sim, aquele que diz "shuffle".
- Não costuma ser o meu preferido, mas hoje pode ser.
- Boa. Estudas?
- Ya, na Nova. E tu?
- Ya, também, na velha. Nop, chumbei nos exames e este ano estou a trabalhar para ter dinheiro para viajar ou pagar propinas ou comprar droga. Uma das três.
- Droga é um investimento bom. Olha a Aspirina!
- Tu percebes-me.
- Achas?
- Não sei, mas és um miúdo fixe e tens sentido de humor. E uma boa playlist.´
- Obrigado, diz o miúdo fixe, que se chama Alfredo.
- Boa Alfredo, que tem cocó no dedo. Prazer.
- Prazer por parte da?
- Da história. É esse o meu nome.
- História?
- Sim história.
- Que raio de nome.
- Chamo-me assim porque de hoje em diante faço parte da tua história. Vou ser a miúda que conheceste no autocarro a caminho da faculdade e que te deu o número de telefone antes de sair, exactamente aqui.
- Espera, espera.
- Não preciso. Liga-me se quiseres continuar esta história.

Liguei.

A Dimensão das Coisas


É verdade que gosto de escrever. E até não é difícil. Obedece-se à regra “usar sempre o mesmo tempo verbal” e depois basta pontuar bem, escrever sem erros e usar, aqui e ali, uma prosaica ligeiramente em desuso.
O problema são os títulos.
Os títulos dos textos são, na verdade, como as relações do quotidiano. Vejamos:

O patrão é patrão, mas pode ser chefe, colega, companheiro, mestre, empresário, CEO ou um grande cabrão;
A mãe é mãe, mas pode ser perfeita, chata, inconveniente, inteligente, linda, démodé, ou a maior palavra que o mundo tem;
O pai é pai, mas pode ser rigoroso, brincalhão, ausente, doce, austero, despegadão, mariquinhas, ou um grande cabrão;
O cão é um cão, mas pode ser fiel, rezingão, surdo, brincalhão, meigo, bruto, ou o melhor amigo do homem;
O amigo é amigo, mas pode ser como a mãe, o pai e o cão, ou o gajo\a que está sempre lá;
O\A namorado\a é a companhia de uma vida, não é nenhum dos anteriores, pode ser ciumento\a, liberal, fútil, culto, carinhoso\a, sexual, bruto\a, violento\a, compreensivo\a, dar bom colo, ou a pessoa que um dia muda a tua vida para sempre.

Na verdade os títulos são adjectivos que dão e tiram, que batem e beijam, ou uma soma nula.

Na verdade, que se fodam os títulos e Viva a República!!!

quarta-feira, 31 de maio de 2017

Promessa da Aliança

Acordei, aprumei-me. Uma camisa elegante, uma gravata preta. Cuidei como consegui dos sapatos.
Não dormiste em casa esta noite. Nem dormiste comigo fora dela.
A primeira desde há muito tempo.
Saí de casa, assim todo janota. Cabeça baixa e mãos nervosos nos bolsos.
Passei na florista.
Pedi 12 rosas vermelhas. Duas com botões fechados.
Duas fechadas a simbolizar a nossa vida. Duas conchas que entre outras se manifestam apenas uma para a sua semelhante. Tu e eu vaidosos no meio de vaidade alheia.
Não quis grandes arranjos no bouquet.
Pedi para deixar os espinhos numa rosa. A vida a dois não é um mar de rosas (curiosa expressão).
Encaminhei-me para ti.
Já falta pouco para te ver.
E mesmo que a última vez que te tivesse visto tivesse sido ontem de manhã, já tenho saudades tuas.
Saudades para sempre de ti.
Solto uma lágrima a pensar em ti, a pensar em nós e na nossa felicidade.
Acho que vais gostar da rosa de espinhos e das rosas fechadas.
Acho que vais gostar que te dê rosas passados mais de 40 anos de casamento.
Estou barrigudo, com reumático, mas continuo a amar-te e sei que sou amado.
Solto outra lágrima.
É isto o amor. Chorar por felicidade, mesmo gordo e coxo.
Entro já onde tu estás. Ponho-te as rosas onde não lhe consegues chegar nem ver.
Não lhe sentes o cheiro, nem das outras pessoas\rosas abertas que te choram.
MORRESTE-ME!
Amo-te para lá da morte que nos separa.


terça-feira, 23 de maio de 2017

Já Não Há Novidades

Acordo rameloso, estrambelhado, desajeitado, desajustado.
Ligo a máquina do café.
Acendo a televisão enquanto a máquina do café aquece.
Baixo o som da televisão para não acordar F.
Coloco a chávena por debaixo da bica do café e carrego no botão luz de esmeralda.
O cheiro a café já me ajuda a despertar e o primeiro trago acorda-me enfim.
Corto pão para torrar e dou uma vista de olhos na televisão de 100 canais.
1 - Trânsito \ 2 - Bonecos \ 3 - Trânsito \ 4 - Trânsito \ 5 - o mesmo que o 1,3 e 4 e que o 6, 7, 8
Desisto de prosseguir e reinicio
1 - Bola \ 2 - Bonecos \ 3 - Bola \ 4 - Bola \ 5 - o mesmo que o 1,3 e 4 e que o 6, 7, 8.
A torradeira já acabou o seu trabalho e agora é a vez da manteiga.
Como que me delicio e olho para a maçã. Tenho de me vestir.
Demoro tanto como ontem e como me irei demorar na 2a-feira seguinte.
Volto à TV.
1 - Atentado terrorista \ 2 - Bonecos \ 3 - Atentado terrorista \ 4 - Atentado terrorista \ 5 - o mesmo que o 1,3 e 4 e que o 6, 7, 8.
Desisto, mortificado, triste, raivoso, intolerante. Caramba, as calças não estão lavadas!
Volto a mim e ao eu.
Deixei-me levar.
Volto à televisão.
No 2 continua bonecada e os outros agora variam. 1 - Corpos despedeçados \ 2 - bonecos \ 3 - comentador político \ 4 - comentador militar \ 5 e seguintes: recibos verdes qualificados e de gravata.
Fico nos bonecos.
Ao fim e ao cabo este canal não me diz como pensar é vejo cores
CORES.

quinta-feira, 9 de março de 2017

Cascas de Terror

Abri os olhos algo a custo e vi a luz, uma luz, uma qualquer luz por detrás daquilo que me parecia ser uma fina parece de estuque, onde eu, fetal, me encontrava.
Debati-me para partir a carapaça onde de alguma maneira fui parar. Curiosamente não me encontrava nem ansioso nem em pânico.
Não consegui e por uns momentos, por um segundo, a carapaça nem sequer se mexeu com os meus esforços.
De repente um baque seguido por um estilhaçar como quem parte amarrota uma folha de papel e a luz fria de uma lâmpada fluorescente.
Percebi que tinha eclodido de uma espécie de ovo multicolor. Podia ver vários tons de cinzento, um preto e nos sítios onde a casca se partira via um dourado muito forte.
Desconhecia onde estava, mas ao olhar com mais cuidado notei membros decepados espalhados pelo chão, a contorcerem-se de volta de uma carcaça de porco.
Vi humanoides com garras de urso, gansos com pernas de cangurus e uma cria de elefante com cabeça de golfinho.
Dentro de um tanque um tubarão com unhas de preguiça e penas de catatua na cabeça.
Em terror corri para uma luz mais branca, mais forte, que presumi ser a saída.
Ao alcança-la vi que um enorme letreiro pendia sobra a minha cabeça. Dei uns passos para a ler e vislumbrei “Circo dos Horrores”. 

Ao ver-me numa refracção soltei um pio.

sexta-feira, 3 de março de 2017

Das Coisas Ocas


Tens o olhar vazio como se de uma gárgula enviesada te tratasses.

Enviesada porque és bela. Talvez a mulher mais bela que eu já conheci.

Porém toda a beleza do mundo não é para ti nada mais que uma manhã nublada.

A mais bela de mim não sabe do que fala a canção do Armstrong, nem sei se sentes.

Tens os olhos pintados de um verde baço, sem brilho algum, assim como não tem brilho a tua vida.

Desde que o chão da tua casa se abriu em dois e de lá esvoaçaram duas folhinhas de chorão e te tocaram uma na mão outra na face que o teu corpo adormeceu.

Hoje, nessa tua casa vazia és mais um móvel que range ao respirar e cujas gavetas perderam as chaves algures no fundo do tempo.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Memórias


Hoje, ao deitar, recordei-me dele.

Ainda que o tivesse visto apenas por alguns segundos retive tanto dele!

Tinha rugas de velhice, nariz e orelhas de velho.

Os nós dos dedos eram grossos, como se o cálcio tivesse encontrado ali um sítio para prosperar.

A sua voz rouca, calma, vivida, paternal. Era a voz segura de quem já teve demasiadas certezas na vida para continuar certo acerta de tudo.

Os seus passos eram fortes e incertos. Uma certa rigidez nos joelhos.

Envergava uma roupa escura. Demasiado escura para a época. Talvez estivesse de luto.

Calçava botas mexicanas, carregadas de lama. Hortelão presumi eu.

Chegado ao pé de mim disse, muito clara e sincopadamente: dá-me o telemóvel e a carteira seu badameco ou dou-te um tiro!

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

Ficar para não morrer

Quando tudo falhava conheci-te. Mas isto é o fim da estória.

Há uns meses valentes fiquei sem marido. Depois fiquei sem trabalho.
E por estar sem trabalho fiquei sem casa. Voltei para os pais.
Para não estar a sobrecarregar os meus pais vendo o carro. Fiquei sem carro.
Quando se acabou o dinheiro do carro fiquei sem maneira de comprar comida. Fiquei na bancarrota.
Estando na bancarrota fiquei desesperada.
Por desespero comecei a pensar matar-me. Os meus pais ainda tinham os meus irmãos. Fiquei depressiva.
Um dia estava à chuva e mais triste que nunca. Fiquei encharcada.
Tu deste-me abrigo no teu guarda-chuva e fiquei reconfortada.
Olhei para ti, com o cabelo molhado à frente dos olhos e achei-te bonito. Fiquei quase envergonhada.
Convidaste-me para um chá para que eu me pudesse aquecer. Fiquei enternecida.
Como eu não tinha para onde ir e tu já tinhas ido onde tinhas de ir ficamos horas à conversa. Fiquei encavacada.

Apaixonei-me por ti. Fiquei sem chão.