segunda-feira, 17 de outubro de 2016

Morto no Sofá

Disse-me uma amiga que teve uma experiência de quase morte que viu o corpo estatelado na estrada, duas pessoas a saírem apressadamente do carro e transeuntes com as mãos na cabeça.

Descreveu-me como se a alma se tivesse separado do corpo, e por não ter peso, ou talvez por pesar apenas 21 gramas, esvoaçava livre 4 metros acima da realidade.

“Era uma sensação de liberdade mas de tristeza permanente”, referiu.

E foi exactamente assim que me senti há pouco.

O corpo a tornar-se leve e a esvoaçar que nem as pétalas de um dente de leão e ao mesmo tempo eu a ver o meu mesmo corpo. Havia uma qualquer ligação ao corpo lá em baixo, inconsciente e disforme no sofá.

Vi a minha televisão. Passava MTV.

Vi a estante dos livros. Quase vazia.

Vi a porta da cozinha e o cortinado a esvoaçar como eu, mas preso ao varão, como se não se conseguisse suicidar nunca.

Não me conseguia conduzir, apenas captava o que o acaso da alma me mostrava.

Era tão bom estar ali em cima. Calmo. Sossegado. Esquecido. Virtual.

Por outro lado era tão mau estar ali em baixo. Morto. Sossegado. Esquecido. Real.

Vi a meu lado um saquinho com pedrinhas azuis e um tubo esquisito de vidro.

“PORRA!”, disse em espírito.

Voltei a fumar meth!

sexta-feira, 14 de outubro de 2016

Isqueiros e Amor

Quando dei por mim estava de perna traçada a beber um sereno conhaque francês e a olhar a desinteressante avenida.
Desinteressante porque o que observava era mais do mesmo: pessoas, carros e pessoas dentro de carros e sacos nas mãos das pessoas.
Já tanta vez me tinha divertido a ver as pessoas e a imaginar a sua vida e pensamentos, as suas agruras e predicados, as suas maquilhagens e rugas.
Hoje não era esse o dia. Hoje tinha-me dedicado ao lado à soturnidade e embasbacamento.
Quando dei por mim estava esquecido porque estava assim, e agora que voltei a mim lembrei-me: a rapariga que trabalhava no escritório de advogados abaixo da minha casa de rico tinha sido despedida. Logo hoje que a ia convidar para… para… nem sei bem.
Mas decerto que seria hoje que ia falar com ela, dizer-lhe que decorara os seus horários pelo seu perfume, que sabia o seu nome por ter mentido descomunalmente ao segurança do prédio e mais nada.
Corria o risco de parecer um stalker, um doidinho daqueles que se vêm nos filmes que mostram o corpo nu e pálido a transeuntes, mas não me importava. Ela saberia enfim que olhava para ela e que me deixava interessado.
Mas hoje, tinha de ser hoje, ela foi despedida. E eu nem sabia a razão, e talvez não viesse a saber nunca.
Por isto hoje não estava interessado nas pessoas que passam e repassam. Por isto hoje o tabaco me sabia a ar puro e fazia-me sentir um alívio vazio.
Do nada senti o corpo a retesar-se e o sangue a afluir-me à cabeça, quente e desorientador.
Era o teu perfume e o som do teu tacão.
Olhei em volta, pressenti-te.
Reconheci-te.
Estavas ao meu lado.
Procuravas o teu isqueiro na mala e ofereço-te o meu.
O resto foram estórias.