segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

corre rapaz, corre

Um rapaz corria, veloz e voraz, rua acima, rua abaixo.
O seu propósito? Apenas de propósito, porque queria, porque podia
O vento inventado pelo seu correr denunciava as suas têmporas pálidas. O suor puxava lustro à sua testa.
Os seus sapatos gastos não cansavam as pernas mancebas, os buracos nas solas abriam-lhe bolhas nas plantas dos pés, que lhe doíam tanto como bolhas de sabão na cara do cliente do barbeiro.
As pernas corriam, os pés soavam, o chão passava sincopado por debaixo dos sapatos rotos. O cabelo voava ao vento inventado e o suor caia exangue no chão passado e repassado
A rua era sempre a mesma, os passos sempre do mesmo, o suor secava ao toque na terra.
Nada mutável no imutável.
A boca entreaberta, dançava aos passos trotadores. A respiração era profunda.
O sal do suor confundia-se com o outro sal, das lágrimas.
A respiração profunda confundia-se com o soluçar.
A corrida que se podia fazer confundia-se com raiva e impotência.
A corrida que se podia fazer era raiva.
A corrida que se podia fazer era impotência.

Algures num quarto mal iluminado e mal arejado um estertor final cansou pernas gastas de passos de pés com bolhas devido solas esburacadas.
A corrida que se podia deixou de se poder. A boca que respirava profundamente deixou de soluçar.
A rua… a rua era sempre a mesma, imutável.
O rapaz corria, rua acima, rua abaixo.
O seu propósito? De propósito, enraivecido e impotente.


"passa o neto, a assobiar,
a correr a bom correr
e o avô que o vê passar,
diz-lhe, a rir,
só por dizer:
Ainda te vais cansar..."
António Torrado

http://www.youtube.com/watch?v=htf-yWeX2CE&feature=related

1 comentário:

  1. e ele correu tanto, tanto que parou para pensar e concluiu que já é tempo de entrar noutra corrida. vá a ver, esperamos novo delírio literário teu.

    saudações

    ResponderEliminar