Mais um dia como outro qualquer na vida de uma médica, tirando os dias de banco.
Consulta para aqui, consulta para ali. Mais uma receita, mais uma compêndio verificado, analisado e duvidado. Mais um "vai correr tudo bem" ou "vamos fazer para que tudo corra bem. Ainda vai ver o seu netinho na Universidade" ou "infelizmente tenho más notícias..." (o resto decida quem lê).
Ela despiu a bata, soltou o cabelo e por entre franjas e madeixas de escuro cabelo, soltou-se um suspiro cansado.
Voltou para casa, e apesar de ter viatura própria prefere o metro. Questões ambientais e literárias.
Chegou à casa vazia. O seu marido tem um trabalho das nove às cinco. Ela tem o horário que lhe derem.
Aqueceu a chaleira, escolheu a saqueta devida, que devia ser de chá preto, a julgar pela hora.
Foi beber para a janela. Lembrou-se de uma passagem do Estrangeiro e sorriu.
O ar do dia ainda ia bem vivo e a vida naquela rua de prédios altos ia mortiça.
Deixou-se ficar.
Ele veio do escritório. Cansado de tanto responder a e-mails e atender pessoas que conhece mas nunca viu.
Ele usa o carro porque não gosta de estar à espera do autocarro. Prefere chatear-se no trânsito e fazer música rouca com a buzina do seu carro que ainda cheira a novo.
Estacionou na rua detrás e ao chegar perto de sua casa viu uma ambulância dos bombeiros. Estava com aquelas luzes psicadélicas azuis ligadas e pensou "pronto, lá desceu ela as escadas e foi cumprir o juramento não sei de quê".
Ela fazia sempre isso. Sempre que ouvia uma ambulância virava a cara. Mesmo que estivesse para anunciar a sua gravidez.
E sempre que alguém parecia que se estava a sentir mal, ela ia lá ver se podia ajudar. Ele não se chateava, algumas vezes até ficava orgulho, mas outras ficava desamparado.
Hoje sentia-se orgulhoso. Sabia que a ia ver ali ao lado da ambulância. Tinha essa certeza.
Aproximou-se. Ia surpreendê-la.
Passou por entre a multidão de dez almas que se acotovelavam e viu-a e ficou com os olhos rasados de água.
Ela tinha-se suicidado.
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