Faz exactamente hoje quatro anos desde que não chove na minha terra.
Nós até estávamos habituados à falta de água de quando em vez, mas quatro anos é muito tempo. É tempo demais.
Ainda me lembro da última gota d'água que me aterrou na cabeça, já meio descoberta na altura. Foi uma lágrima celeste num fim de tempestade, já com arco-íris a acompanhar um sol radiante.
Sorri pela gota se ter estatelado na minha careca. Estive abrigado entre o café e o toldo da esplanada à espera que a maldita trovoada (naqueles dias maldita) se fosse.
Quando me pareceu que se tinha ido fiz-me ao caminho de casa, e lá caiu a minha última gota de chuva.
Nesses dias, como hoje, era solteiro. O tempo era meu e só meu. Se chovia ficava deitado até mais tarde, se estava sol acordava cedo. Comia o que queria quando queria. Bebia o que queria com quem queria e quando queria.
Nesses dias tinha toda a liberdade que uma homem podia ter. Ia namoriscando aqui e ali. Era um homem de sorriso fácil.
Nesses dias, menos que hoje, não era feliz
Naquela tarde de chuva, depois de ter molhado a careca ela passou por mim.
Ela era Margarida. Eu adorava-a.
Margarida tinha passo ligeiro mas não muito apressado, olhos melados e grandes, cabelo preto, comprido, levemente ondulado. Tinha cintura mas não estreita. Pernas fortes, rabo e peito bem feito. Tinha a cara um quase nada queimada do trabalho ao sol e um sorriso perfeito, que eu acreditava ser só para mim.
Nunca lhe dirigi mais do que um cumprimento.
Sempre tive muita vontade de lhe falar, mas sempre que eu pensava "é desta!" um nó no estômago atacava-me a goela e logo os polegares se punham à roda e à roda.
Conheci a Margarida na 3ª classe, quando ela chumbou, a burra. Nessa altura ela era só mais uma gaiata que andava à escola, e eu, com oito anos queria lá saber de gaiatas. Queria era ver o Benfica e roubar um "pegó-dente" na loja do Bucha.
Há quatro anos, quando ela passou por mim, eu já era um homem feito, e apesar da barba e da careca, voltei a não conseguir falar-lhe.
Ela passou, ou acenei e ela sorriu. E eu fui com vontade de pular até casa.
Quando cheguei a casa caí em mim e fiquei a rogar-me pragas. "Ela a sorrir, ninguém na rua e eu só sei fazer um adeus", pensei.
Adormeci assim, zangado comigo e nem jantei.
Quando acordei, no dia seguinte fazia um frio de rachar e ainda mal tinha acabado o Verão dos Marmelos.
Tinha acordado decidido a ir falar-lhe do meu mal de estômago. De lhe fazer ver que a tonteira dos meus dedos era causado por ela.
Tinha acordado decidido a dizer-lhe que a queria como minha mulher e que a havia de fazer feliz para o resto da vida. Havia de lhe dizer que queria que os meus filho tivessem o cabelo dela e a minha altura.
Vesti-me, e tive o cuidado de usar a minha camisa branca e as botas menos gastas. Fiz-me ao caminho e bati-lhe à porta. Não tive resposta. "Na, ela deve ter ido ao pão ou assim", dizia de dentro para dentro.
Esperei na esquina um belo bocado até que a Velha mais velha da terra me perguntou o que estava ali especado a fazer. Disse-lhe por quem esperava e a Velha avisou-me que ela tinha ido para a cidade, para Lisboa.
Acho que nesse dia dividi o tempo entre aquela esquina e o copo de tinto que teimava em não se esvaziar.
Desde esse dia amaldiçoo-me e em vão luto contra os olhos no chão.
Tenho sido uma sombra desde esse dia que não chove. Faz agora quatro anos que a minha melhor companhia é o silêncio e por vezes, mais do que queria, o fundo do copo que agarrei faz amanhã quatro anos.
Faz hoje quatro anos que eu não vejo a Margarida, e, por mais mulheres que com eu tivesse dormido, não houve nenhuma com quem eu quisesse dividir a cama e a felicidade para sempre.
Se eu tivesse sabido que aquela maldita gota (naqueles dias e agora) era o sinal da minha tristeza, então mais valia que tivesse sido apanhado por um raio logo ali.
Mas o destino assim não o quis.
Agora olho para o horizonte e vejo umas nuvens cinzentas, que ameaçam chuva, como muitas outras já ameaçaram noutros dias, mas a esperança é vã. São só mais umas nuvens passageiras.
Está um calor do arco da velha e tenho de tirar a boina para limpar umas poucochinhas gotas de suor que já me atacam.
Sinto um frescor na careca, como não sentia à muito tempo. Como se fosse uma agulha mas fresquinha e sem dor. Ainda me lembro do que é. É uma gota de chuva.
Levanto-me a sorrir e a bendizer aquelas nuvens que afinal não são passageiras.
Como estou sozinho na rua vou ver se dou o alerta lá no café, que isto é coisa para se avisar. É assim quase um milagre.
A meio do caminho um carro de praça pára.
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