O teu rosto nunca mudou. Por mais anos que passaram o teu rosto continua o mesmo desde que te vi.
Estava um dia de festa. Foguetes, concertinas e gargalhas povoavam a aldeia xistosa normalmente vazia.
Eu tinha o quê?, dezassete anos? Devia ser.
Tu tinhas para aí a mesma idade, mais ou menos.
Lembro-me de ter corado e inspirado forte para te sorrir. Medo, cheio de medo era como me sentia.
O teu cabelo abanou um pouco com o susto de uma rusga que passava na esquina. Sem querer olhaste para mim e viste o meu sorriso. Baixaste a cabeça sem me deixares ver a tua reacção.
Hoje, homem maduro, casado e pai de filhos, dois, vou começando a perder a memória.
Os dedos estão menos lestos e a vista turva. O arquitecto que em tempos fui traduz-se hoje apenas numa assinatura e num número de contribuinte de pessoa colectiva.
Já não quero saber de foguetes nem de folclore. Na verdade já não quero saber de nada.
Hoje vejo-me com a conta bancária recheada, as viagens cliché feitas, um bom guarda-roupa, uma esposa que me ... que cuida de mim e a quem faço companhia. Dois filhos licenciados e bem-empregados.
Tenho a minha casa de campo, o apartamento no Algarve e habito no lar arrendado algures nos subúrbios.
Não me deixei ganhar barriga mas deixei-me ganhar bigode.
No fundo, agora revendo-me à miopia, fiz tudo o que um homem comum fez.
Ah, já vos disse que a minha esposa é linda e perfeita? Que continua com a cintura fina e com os olhos verdes brilhantes? Que o seu cabelo negro é natural excepto uma madeixa que lhe dá uma graça daquelas?
Agora, cansado, vejo que não fui mais do que isso: Um homem comum. Sem direito a um "H" maiúsculo.
Limitei-me a viver a minha vida certinha, tal qual um catequismo ordena.
Lamento a horta que não cultivei, os móveis que não executei, o retiro social no Mali que não fiz. Lamento ter substituído as urgências do hospital pelo meu atelier quando o mais velho partiu o Rádio ao meio.
E apesar das minhas faculdades me começarem a falhar mantenho no fechar de olhos a tua imagem e sonho com o que a minha vida poderia ter sido.
Nunca corri riscos e lamento-me. Imagino-me contigo hoje, algures numa aldeia beirã, com um Mercedes do final dos anos 80, ouro a pender-me pelos braços e pescoço. O meu cuidado bigode transformado em farto e desalinhado bigode. Tu, com trejeitos de rica desajeitada, tinhas arranjado a nossa maison da maneira mais espalhafatosa que eu alguma vez veria enquanto eu falava das obras que fiz la na France e do bem que se vive lá.
Teríamos a casa que nós construímos e o carro que comprámos com muito trabalho e privações.
Os nossos filhos seriam uns híbridos de luso-gauleses, meio grunhos meio uh la la e fariam os encantos das poucas roliças que ainda apareciam nas festas da terra.
Talvez aí eu pensasse que realmente fiz alguma coisa da minha vida, talvez eu aí me tivesse sentido realizado.
E talvez nessa realidade sonhada eu sonhasse em ser quem sou. Talvez eu achasse que se tivesse estudado teria arranjado um bom emprego, uma boa casa e uma boa família e que agora, em vez de gastar o que me resta em ornatos e copos de vinho a murro, estaria a ler um bom livro ao sol e ao vinho.
Saio do marasmo quando a chave toca na fechadura. A porta abre-se e és tu. És tu quem eu vejo, tal qual como naquela tarde de festa.
Tu sorris-me e eu recordo que o teu rosto continua o mesmo desde que te vi.
No ano seguinte voltei a cruzar-me contigo na mesma festa no mesmo sítio. Levei a minha namorada mas isso não me impediu de ir falar contigo. Na volta trouxe-te comigo e abri uma guerra com os meus pais.
Fugiste comigo e por nós para o Barreiro, entregaste-te à família e eu à faculdade.
Hoje sou um homem comum, mas com uma mulher excepcional.
Afinal de contas acho que arrisquei uma vez. Arrisquei em recordar para sempre a primeira vez em que te vi.
Antes de me levantar para te beijar marco o livro e levanto o copo vazio.
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