Desde que comprámos a casa nova velha da década de 1960, desde que
restabelecemos os contractos e de cada vez que esperamos que a nova torneira
prateada no dê água quente ouvimos os tubos a iniciar na parede do
quartocozinha uma leve batida musical, que vai crescendo até ser uma forte
batida industrial e se vai esvaindo numa leve batida de chuva das goteiras.
Estranhámos e amedrontámo-nos com o som mecânico da parede. Pensámos que talvez se tratasse de uma fuga de água, mas a parede nunca apareceu tingida de lama e ferrugem na cal. Perguntámos a entendidos que nos aliviaram dizendo "São pareces velhas, e o cano soltou-se com o tempo. Isto é o som da água quente a dilatar os canos." e isso serviu-nos na altura.
A semana passada resolvemos mudar os canos. Pó, azulejo, palavrões e dinheiro entre o quarto e a cozinha. Quando o dia acabou a cozinha estava numa de brilho cerâmico e o quarto estava a ficar ferido no tijolo, violentado por martelos e escopro.
Quando acabamos, suados, doridos e ocres escuros de pó e de tijolo, pestejanámos várias vezes. Não por sono mas por incredulidade.
Durante uns minutos pensamos que havia fungos microscópicos com capacidades psicotrópicas, mas não.
De dentro do golpe aberto a golpes de martelo apareceu-se-nos um anão. Um anão mirrado, encarquilhado e seco como a pele antiga de uma cobra. Emperrado não conseguia sair da parede. Eu tirei-o e a minha mulher e o meu sogro foram buscar água e fruta.
Ele aceitou e num estranho português correcto disse: Estava a ver que nunca mais me tiravam daqui.
Quisemos saber como tinha ele sobrevivido. Disse A parede deixa entrar ar e eu tenho pulmões anões. Para comida roía a ferrugem dos canos, e como sou bem regrado e não me mexo muito, três raspadelas chegavam para me alimentar por meia dúzia de dias. A água bebia quando quisesse, era só alargar os canos um pouco que ela vertia. O pior era as fezes, que vinham sempre ferrosas, mas que como não como muito não cheiram mal por aí além.
Perguntamos como é que ele tinha ido ali parar e parece que foi coisa da PIDE.
Quando acabou a fruta, perguntou onde era a janela. Disse que apesar de cego pela luz queria ar puro.
Indicamos-lhe o caminho, de mão nossa nas costas outrora emparedadas.
Quando lá chegou, abriu as asas e voou.
A ferida na parede ficou para sarar amanhã.
Estranhámos e amedrontámo-nos com o som mecânico da parede. Pensámos que talvez se tratasse de uma fuga de água, mas a parede nunca apareceu tingida de lama e ferrugem na cal. Perguntámos a entendidos que nos aliviaram dizendo "São pareces velhas, e o cano soltou-se com o tempo. Isto é o som da água quente a dilatar os canos." e isso serviu-nos na altura.
A semana passada resolvemos mudar os canos. Pó, azulejo, palavrões e dinheiro entre o quarto e a cozinha. Quando o dia acabou a cozinha estava numa de brilho cerâmico e o quarto estava a ficar ferido no tijolo, violentado por martelos e escopro.
Quando acabamos, suados, doridos e ocres escuros de pó e de tijolo, pestejanámos várias vezes. Não por sono mas por incredulidade.
Durante uns minutos pensamos que havia fungos microscópicos com capacidades psicotrópicas, mas não.
De dentro do golpe aberto a golpes de martelo apareceu-se-nos um anão. Um anão mirrado, encarquilhado e seco como a pele antiga de uma cobra. Emperrado não conseguia sair da parede. Eu tirei-o e a minha mulher e o meu sogro foram buscar água e fruta.
Ele aceitou e num estranho português correcto disse: Estava a ver que nunca mais me tiravam daqui.
Quisemos saber como tinha ele sobrevivido. Disse A parede deixa entrar ar e eu tenho pulmões anões. Para comida roía a ferrugem dos canos, e como sou bem regrado e não me mexo muito, três raspadelas chegavam para me alimentar por meia dúzia de dias. A água bebia quando quisesse, era só alargar os canos um pouco que ela vertia. O pior era as fezes, que vinham sempre ferrosas, mas que como não como muito não cheiram mal por aí além.
Perguntamos como é que ele tinha ido ali parar e parece que foi coisa da PIDE.
Quando acabou a fruta, perguntou onde era a janela. Disse que apesar de cego pela luz queria ar puro.
Indicamos-lhe o caminho, de mão nossa nas costas outrora emparedadas.
Quando lá chegou, abriu as asas e voou.
A ferida na parede ficou para sarar amanhã.