terça-feira, 19 de novembro de 2013

Antes de ir para a cama

É já tarde quando ele decide agarrar numa BIC de cu mordido. Pensa se existe alguém na Terra que não mordisque canetas e em particular BIC.
Na realidade nem sabe o que escrever, mas o seu editor obriga-o.
Nesta época existem computadores, tablet e outras tecnologias que tornaram os bolígrafros obsoletos, mas ele continua com tão desactualizado objecto entre dedos.
Já escreveu algumas páginas deste seu quarto romance.
O primeiro foi um sucesso inesperado; o segundo a obra de um mestre; o terceiro recuou qualitativamente e o quarto... o quarto é uma obrigação de se criar na gestação de um embrião humano. Tem 9 meses para escrever, ou fica sem contrato e sem promoção e, quiçá, sem vida.
Está sozinho em casa. A fama roubou-lhe a mulher e deu-lhe affairs que nunca pedira. Os affairs roubaram-lhe dinheiro e deram-lhe problemas. Os problemas trouxeram o quarto romance.
Tinha saudades de quando trabalhava no escritório de um hotel e a sua esposa na avenida numa multinacional.
Riam enquanto almoçavam juntos...quando dava para almoçarem.
Apanhavam sol, faziam planos de se casar um dia e planos mais sérios de serem pais.
À noite ele roubava tempo ao namoro para escrever. Não escrevia todos os dias, e ela olhava-o com paixão medida à medida que ele gastava o tubinho azul escuro da BIC.

Agora não tinha nada, nem ideias. Tinha uma casa demasiado grande para ele e um carro com mais luzes por dentro que por fora.
Recorda isto tudo e recomeça a escrever. Mas nem uma frase acaba quando o telefone toca.
"Olá"
"Quando? Agora?"
"Mas... Estou em casa"
"Vinte minutos?"
"Estou a escrever? Mas está tudo bem?"

um beep ouve-se.

Ele fica nervoso. Não sabe como reagir. A BIC rodopia nervosamente nos dedos e os dedos tremem que se fartam. Faz quanto tempo que não a vê? Dois anos e tal.
Ele sabe agora, nesta altura, depois de a ter despachado, que ela é a mulher da vida dele.
O tempo teimosamente não passa...
Até.
Até que a campainha ressoa no silêncio na casa de um homem solitário.
Ele vai a correr abrir a porta e vê-a, tão normal e perfeita como da primeira vez que se beijaram. O cabelo solto, desalinhado e mal cortado, dava-lhe um ar irreverente, apesar de trabalhar numa major mundial. Tinha o sorriso mais lindo da história, e nem uma pequena cárie o estragava. Não era alta, tinha o tamanho certo.
Ele ficou atrapalhado e ela quebrou o gelo. "Então pateta, cumprimentas-me?"
Ele ficou ainda mais atrapalhado e ela beijou-o apaixanodamente. Sem palavras começou a despi-lo e sem saber onde era o quarto, obrigou-o a fazer amor consigo ali mesmo, ao pé da porta de entrada.
No final ela diz-lhe: "Eu ainda te amo, pateta"
Ele diz: "Eu também te amo"
"Cala-te estúpido, mentiroso. Se me amasses não tinhas acabado comigo"
"Descobri há pouco que és a mulher da minha vida"
"Ah foi? Logo a seguir a te ter ligado, aposto"
"Sim"
"Como?"
"Vou escrever sobre o nosso filho"

E fizeram amor uma vez mais. No quarto.

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