segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Necrologia


Todos os dias eu tenho um ritual algo lúgubre. Todos os dias leio com atenção a necrologia do jornal.
Os meus amigos zombam de mim por estar a ler aqueles quadradinhos com cruzes. Eu respondo com graça "É só para ver se morri".
Até que hoje eu li o meu nome ali. Não só o meu nome, mas a minha foto.

Faleceu Augusto António Almeida Antunes
 Foto
Seus pais, irmão e namorada comunicam
que o seu amado filho e namorado faleceu de doença repentina.
A missa de corpo presente terá lugar
amanhã pelas 16h na Igreja de Sto Estêvão.

Senti um calafrio a percorrer-me a espinha. Eu morri.
E agora ali estava eu, no café, com uma bica a fumegar, um prato sujo de bolo e uma caneca com espuma de uma meia de leite.
Senti movimento atrás de mim. Era o meu amigo Bruno.
- Então Augusto, já soubeste?
- Que morri?
- Sim. Epá e agora?
- Não sei. Ainda agora estava todo contente aqui a ler a bola e a política e depois vejo o meu nome nisto dos mortos.
- É tramado. Os teus pais, como é terão reagido?
- Não sei Bruno. Nem sei como os vou encarar quando os vir.
- Pois. Mas olha, agora que morreste, se achares que eles precisam de alguma coisa é só avisar.
- Obrigado, mas ... Como é que eu falo contigo se estou morto?
- É bem visto. Bem, tenho de ir a casa que a minha irmã quer ir ao teu funeral. Está um caco ela. Gosta muito de ti. Não gostasses tu da Carla e a gente ainda podíamos ter chegado a cunhados.
Bem, mas agora não há nada a fazer. 
- Pois. . .
- E tu, vais ao teu funeral?
- Epá, não sei. Devo ir, não é?
- Convém.
- Mas não sei se tenho estômago para ver os meus amigos e a minha família a chorar-me. E muito menos a pobre Carla.
- Então vá. Até logo ou até sempre. Dá cá um abraço. Não é todos os dias que cumprimentamos um morto.
- Pois. . .

Continuo aqui na cadeira. Mortiço. O peso da minha morte carrega-me os ombros.
Um puto acerca-se de mim com os olhos vermelhos e o dedo esticado.
- Estás morto "Guto". Não podes morrer. Eu gosto de ti!
- Mas todos morremos Daniel. E desta vez fui eu.
- Não podes, não podes, não podes.

Tentei chorar, mas as lágrimas não me saiam. Deviam ter secado pela morte.

Não havia mais nada a fazer. Vou para casa e arranjei o melhor fato que tinha.
A minha família já tinha escolhido o caixão e o padre já estava informado.
Esta noite dormi sem que ninguém soubesse que eu estava em casa. A minha respiração já não se faz ouvir e os meus passos não pesam.

A noite passou e hoje decidi não me deitar logo no caixão e esperar só pelo enterro em si.
Quero ver como é que os meus amigos reagem. Ver quantos choram, quantos aparecem, quantos conseguem chegar perto do caixão, quem me carregará até à cova.
Encontro um cantinho onde ninguém me vê e de onde eu vejo tudo.
No final foi uma cerimónia bonita, simples, emocional.
Chegou a hora. A igreja já está quase vazia. Eu saio do meu canto e pela primeira vez toco no meu caixão.
É castanho claro, rijo e frio. O seu interior é em cetim branco e tem uma almofadinha macia.
Deito-me enfim dentro dele. Parece-me confortável para a eternidade.
Fecham-me a tampa e acaba-se.

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